Othon Bastos traduz em filme a angústia e a exasperação de Tancredo Neves

Filme acompanha o drama do político de quando foi hospitalizado ao anúncio da sua morte

Naief Haddad
São Paulo

O compositor Sérgio Ricardo se uniu ao cineasta Glauber Rocha para compor a trilha sonora de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964). Trecho célebre de uma das músicas reproduz diálogo de um militar com o cangaceiro Corisco. "Se entrega, Corisco / Eu não me entrego, não!".

Aos 85 anos, Othon Bastos, o Corisco do segundo longa de Glauber, tampouco se entrega. "Não vou à praça para jogar dominó. Quero continuar trabalhando", diz o ator nascido em 1933 em Tucano (BA).

Ao longo de mais de cinco décadas de cinema, Bastos assumiu alguns personagens relevantes da cultura e da política do país, como padre Antônio Vieira em "Os Sermões" (1990) e Floriano Peixoto em "Policarpo Quaresma" (1998).

Desta vez, a figura histórica revivida é o mineiro Tancredo Neves (1910-1985), o presidente eleito indiretamente no apagar das luzes da ditadura militar, mas que não tomou posse devido a um diagnóstico equivocado e a cirurgias malsucedidas, entre outros fatores.

Bastos é o protagonista de "O Paciente — O Caso Tancredo Neves", filme dirigido por Sergio Rezende que estreia nesta quinta (13). Eles voltam a trabalhar juntos depois de "Mauá - O Imperador e o Rei" (1999) e "Zuzu Angel" (2006).

A nova produção acompanha o drama do ex-governador de Minas, de quando foi hospitalizado, em 14 de março de 1985, véspera da posse, ao anúncio da sua morte, em 21 de abril daquele ano.

"O Paciente" não se restringe ao registro da angústia de Tancredo, que percebe a faixa presidencial cada vez mais distante —como se sabe, o vice, José Sarney, comandou o país pelos cinco anos seguintes.

Baseado no livro homônimo do pesquisador Luís Mir, lançado em 2010, o filme ganha um tom de thriller médico ao mostrar as falhas das equipes e as crescentes desavenças entre os cirurgiões.

Como a obra de Mir, Rezende não aponta um responsável pela morte do presidente recém-eleito. São diversos, inclusive o próprio político, que fugia dos cuidados médicos.

Tancredo, aliás, eram vários: o homem ora teimoso ora afável, o advogado de talento, o político conciliador e persistente, entre outros. Bastos deixa o conjunto de lado para assumir uma dessas faces.

"Não quis fazer um estudo da vida do Tancredo. Não queria saber como ele andava, como falava. Não são 58 anos de política, são 39 dias de agonia e tragédia", conta o ator à Folha. "Se compararmos a vida de Tancredo com um bolo, eu tirei uma fatia. Me importava o retrato humano."

Bastos lembra o trabalho de Gary Oldman como o primeiro-ministro britânico Winston Churchill em "O Destino de uma Nação" (2017), filme que deu ao inglês o Oscar de melhor ator.

Diferentemente de Oldman, que pesquisou profundamente a trajetória de Churchill, Bastos se limitou a ver algumas entrevistas de Tancredo. Não leu biografias e não conversou com familiares.

Além disso, ao longo da preparação para "O Paciente", o ator preferiu se manter distante dos grandes teóricos da interpretação, como o russo Stanislavski.

"A abordagem do personagem foi muito intuitiva", diz Bastos, que evitou até mesmo reproduzir o sotaque de Tancredo, burilado nos anos de infância e juventude em São João del-Rei.

A longa experiência permite ao ator construir seus próprios métodos. Ou, melhor, antimétodos.

Curiosamente Bastos e Sergio Rezende tomaram como referência a maratonista suíça Gabriele Andersen. Nos Jogos de Los Angeles, em 1984, ela chegou cambaleante para o final da prova. Estava desidratada e sofrendo cãibras. "As pernas dela bambeavam, e o estádio olímpico inteiro torcia para que ela concluísse a maratona", lembra o cineasta.

Apesar do enorme desgaste, a atleta conseguiu terminar a prova em um longínquo 37º lugar. Menos sorte teve Tancredo, que morreu sem subir a rampa do Planalto.

Esse estado de angústia e exasperação é tão bem representado por Bastos que o público carioca o aplaudiu por mais de cinco minutos em pré-estreia recente, no Rio.

Um ator menos experiente poderia afundar o filme na monotonia porque a expressão corporal do personagem é bastante limitada. Cerca de 80% das cenas de Tancredo mostram o político na cama, recuperando-se de uma série de intervenções —quatro cirurgias, além dos procedimentos intermediários.

Depois de Corisco, Bastos ficou quatro anos sem fazer filmes. Só recebia convites para viver cangaceiros e não queria se repetir. Voltou em 1968 como Bentinho em "Capitu", de Paulo César Saraceni.

Othon Bastos avisa aos diretores: depois de "O Paciente", ele não quer saber de personagens presos a uma cama.

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