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Paulo Henriques Britto volta à poesia com versos sobre a perda e a ausência de sentido

Autor lança 'Nenhum Mistério' seis anos após último volume de poemas

O poeta Paulo Henriques Britto
O poeta Paulo Henriques Britto - Lucas Seixas/Folhapress
Maurício Meireles
São Paulo

Os deuses do acaso dão, a quem nada lhes pediu, o que um dia levam embora —escreve Paulo Henriques Britto. “Mas não ter tido nunca nada não/ seria bem melhor —ou menos mau?”, continua, no primeiro poema de “Nenhum Mistério”, seu novo livro.

O título da edição já prenuncia o que vem pela frente, uma sucessão de versos sobre a perda, a falta de sentido, a ausência. Mas só depois de lê-los é possível entender o porquê de as duas palavras estamparem a capa.

​Britto as tirou de sua tradução de “Uma Arte”, poema célebre de Elizabeth Bishop. Nele, a autora aconselha o leitor a perder um pouco a cada dia. Aceite austero a chave perdida, a hora gasta bestamente. A arte de perder não é nenhum mistério.

Não foi por menos que esse tema esteve na cabeça do autor nos últimos anos. Em uma noite de 2012, na sessão de autógrafos de seu último livro de versos, “Formas do Nada”, sua mulher, a pesquisadora Santuza Cambraia Naves, teve um acidente vascular cerebral e morreu.

“Último antídoto do nada/ entre as peçonhas da vida/ coisa por sorte encontrada/ e por desgraça perdida,/ amor lega, em sua ausência,/ um lembrete à consciência/ (se ela por acaso esqueceu):/ nada que te pertence é teu”, escreve.

Em outro verso, ele afirma que não há teoria —só práxis— da ausência.

O leitor encontrará um autor mais lírico do que no livro passado, repleto de metalinguagem —e isso se reflete nas escolhas formais.

Britto tem um trabalho profícuo com o decassílabo, verso que costuma ser mais cerebral. Mas na nova obra surgem muitas redondilhas menores e maiores, ou seja, de cinco e sete sílabas métricas. 

A redondilha cria o ritmo que a maioria das pessoas, mesmo sem entender nada de poesia, tem em mente como poético. Aqui vai uma bem famosa: “Batatinha quando nasce/ se esparrama pelo chão”. É a métrica das canções de ninar ou cantigas de roda.

“Fazer uma poesia mais emocional teve o efeito de trabalhar com essa forma. O Mário de Andrade vai trabalhar com a redondilha maior a sério em ‘Lira Paulistana’, seu livro mais amargo e pessoal. Sempre houve uma associação entre redondilha [e emoção]”, diz Britto.

Mesmo assim não é para esperar enormes derramamentos emocionais ou sofrimento desesperado do poeta. “Nenhum Mistério” é lírico, sim, mas vai devagar com o andor.

E pudera. Britto e sua geração tiveram João Cabral de Melo Neto —o antilírico, o poeta da faca só lâmina— como um superego poético.

“Cabral era um pai castrador. Tinha o rigor, a linguagem objetiva. E eu tinha uma tendência forte de escrever uma poesia mais lírica. Eu também gostava das formas fixas, mas elas estavam em baixa.”

O que o ajudou a se livrar daquela sombra cabralina, diz,  foi a tradução. Britto viu que os concretos, que haviam decretado a morte do verso, vinham traduzindo poetas de séculos passados.

Hoje, ele é um dos principais tradutores de língua inglesa em atividade no país. Já verteu para o português catataus cascudos como “O Som e a Fúria”, de Faulkner, e “Contra o Dia”, de Thomas Pynchon.

Embora seja conhecido pelo trabalho com as formas fixas, num momento em que o verso livre é hegemônico nas letras brasileiras, Britto continua operando a adulteração dessas formas.

“Nenhuma Arte”, primeiro poema do livro, é feito em decassílabos. A maioria são heroicos, ou seja, com acentos na sexta e décima sílabas; alguns são sáficos, com acento na quarta, oitava e décima; e outros têm acento irregular.

“O verso livre virou ‘default’. Fazê-lo hoje equivale a fazer sonetos há 120 anos, o que o torna mais difícil. Você tem que ser muito bom de forma para trabalhar com ele”, diz.

“Nenhum Mistério” é pródigo em “enjabements”, jargão para quando a unidade sintática não coincide com o fim do verso. Por exemplo: “Chega um momento em que as mãos/ já não querem cumprir ordens./ Não pegam mais, não apertam,/ e sim mordem”.

“Toda imposição de ordem ao caos exige cerebração, coisa de que só a nossa espécie é capaz; os animais superiores, que certamente têm emoções, não escrevem poesia”, afirma. “Mas as maiores realizações artísticas são aquelas que veiculam uma carga emocional forte através da forma.”

A melancolia de “Nenhum Mistério” se reflete também em muitas frases na negativa, palavras que denotam vazio, ausência ou falta. Para se ter uma ideia, a palavra “não” aparece 111 vezes nos 27 poemas; já a palavra “nada”, 90.

A falta de sentido ou transcendência —seu primeiro livro, não custa lembrar, chamava-se “Liturgia da Matéria”— também aparece. É uma influência do poeta americano Wallace Stevens, afirma.

É nesse contexto que Britto descreve, em um poema sobre a metafísica, o desejo de ser parte de algo tão grande que não se entenda: “Toda crença, ao fim e ao cabo,/ se resume a essa lenda —// o mais rematado dislate,/ coisa jamais entendida,/ que eleva ao sumo quilate/ o caco mais reles de vida.”

Nenhum Mistério

  • Preço R$ 44,90 (72 págs.)
  • Autor Paulo Henriques Britto
  • Editora Companhia das Letras

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