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Livros

Tradutora oferece ao leitor acesso a livro onírico de James Joyce

Nova obra faz sínteses dos argumentos de cada capítulo da trama de infinitos fios sobrepostos de 'Finnegans Wake'

MARCELO TÁPIA

​Finnegans Wake (Por um Fio)

  • Preço R$ 48 (184 págs.)
  • Autor James Joyce; organização, tradução e posfácio: Dirce Waltrick do Amarante
  • Editora Iluminuras

Nestes tempos em que fofocas se espalham com a rapidez e a exponencialidade das redes universais, e julgamentos sumários podem ser feitos em minutos, nada mais oportuno do que rever um dos elementos do “Finnegans Wake”, de James Joyce: o boato que atenta à reputação de Humphrey Chimpden Earwicker (HCE, personagem de muitas identidades, como as demais do romance), que teria cometido um delito de natureza sexual, motivo de julgamento que ultrapassa sua morte e associa-se a suas diversas ressurreições e mutações.

Qual o fio da meada desse livro noturno, onírico? Nenhum ou incontáveis, como uma trama em camadas de quase infinitos fios sobrepostos.

Mas dá para puxar um deles, seguir um percurso e contar uma das narrativas possíveis, à semelhança das múltiplas histórias possíveis do homem: esta é recontada num mosaico de ecos e reflexos por meio das relações entre pais, filhos e irmãos, que permitem perceber os conceitos cíclicos de ascensão-queda e fim-início, (des)orientadores do romance.

A tradutora Dirce Waltrick do Amarante, estudiosa de Joyce, elege competentemente uma linha pela qual se enfeixam fragmentos do livro, um modo de oferecer ao leitor um acesso a ele que inclui, ademais, sínteses do “argumento” de cada capítulo de que provêm os trechos traduzidos.

A organizadora relembra uma passagem de Roland Barthes sobre a fofoca, em seu “Fragmentos de um Discurso Amoroso”, para dizer que as personagens de FW reproduzem o que é contado por esse autor: “Um ouve uma história e vai contando para o outro e assim por diante ao longo das 628 páginas do romance”.

De modo análogo às distorções de uma rede de intrigas, vista sob a não linearidade do sonho, o livro se reconta eternamente.

O escritor irlandês James Joyce, que lançou ‘Finnegans Wake’ em 1939
O escritor irlandês James Joyce, que lançou ‘Finnegans Wake’ em 1939 - Reprodução

O rio de Dirce (“correorrio” é sua tradução para “riverrun”, palavra que abre o livro) nos leva do primeiro ao último capítulo da obra, ao longo de páginas bilíngues. Além do viés do fluxo, a tarefa envolve o modo de recriar o texto feito de palavras de múltipla significação, compostas de outras; referência radical, portanto, do que sempre é o desafio do tradutor: optar por certas formas e sentidos para construir um novo todo feito de outras partes (por exemplo, “our old ofender was humile, commune and ensectuous from his nature” torna-se “nosso velho infrator era humilde, comumnicativo e insextuoso por natureza”).

A tradutora considera uma de suas referências teóricas o estudo “A Tradução como Manipulação”, do linguista Cyril Aslanov, para quem o tradutor “oscila na interlíngua”, agindo como o droguista da “farmácia de manipulação” ou o pesquisador que manipula o código genético. 

As fórmulas de Dirce são possibilidades de recriação que, conforme se espera, convencem ora mais, ora menos, instigando-nos, por vezes, a desvendar as referências de suas opções, o que alimenta a leitura. Recriação é escolha, não “traição”.

Por isso, sempre o traduzido é um renascimento, como é o caso da “Balada de Persse O’Reilly”, que Joyce cria para figurar em FW, referente à queda de HCE; o resultado em português seria mais pleno se, além de feito para ser lido, o fosse também para ser cantado segundo a partitura joyciana: “Nem os soldados do rei nem os seus cavalos/ Reissuincitarão seu corpus/ Pois um encanto não há na Irlanda e no inferno/ Capaz de erguer um Caim.”

Marcelo Tápia é poeta, professor da pós-graduação em estudos da tradução na USP  

Poeta, professor da pós-graduação em estudos da tradução na USP  

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