Quer entender Godard? Ainda quer? Não se impressione. É melhor deixar-se levar na viagem (o capítulo 3, aliás, é dedicado às viagens e aos trens). Mas há princípios nela.
O homem pensa com as mãos, está dito logo no início. No caso, trata de usar as mãos para trabalhar a imagem. E depois juntar-lhe a palavra: temos “Imagem e Palavra”, ou “o livro da imagem”, numa tradução mais literal do título original.
Entram também os ruídos e a música, que se unem como numa sinfonia desconcertante: de onde virá o som? Da esquerda ou da direita? Dos agudos ou dos graves? Embarcamos nessa viagem já pelo remake. E ali as desgraças de todos: a bomba atômica explodindo e pairando sobre nossas cabeças, a matança dos judeus na Segunda Guerra.
Godard por vezes é claro até a evidência. E a evidência vem da imagem. Vejamos uma associação preciosa: o bico dos aviões americanos da Segunda Guerra, representando um tubarão, montado junto com o tubarão de Spielberg. Alguns fotogramas, apenas. Queremos agarrar a ideia, mas ela passa e se vai.
E passamos então pela palavra. É tudo como se fosse não imagem e palavra, mas imagem contra a palavra. A palavra, que com tanta frequência nos traz a ilusão de entendimento. A palavra de cada religião, de cada poderoso. A palavra que explica o mundo e domina.
Godard está na contramão. Seu princípio é o da contradição: com a mão ele traz imagens de todas as eras, de todos os tempos, coloca-as lado a lado, distorce, deforma, transforma o sentido. Não cria, recria.
Ninguém melhor que Éric Rohmer compreendeu Godard: ele é um ladrão de mundo. Rouba imagens, palavras, sons e os reordena. Não é caótico: é como escutar uma sinfonia.
“A nossa música”, disse um dia o próprio Godard, referindo-se à Europa. Nossa música é a guerra, portanto não há porque esperar alegria. Ela é ruidosa, cruel e mortal. As imagens surgem ora em alto contraste, ora com cores saturadas até o limite (chegando por vezes à abstração). Não se trata de uma voz autoritária, nem mesmo que explica o mundo. Veja-se “O Espírito das Leis”, um dos capítulos do filme.
Ou ainda a clara tomada de posição de Godard: eu estou do lado dos perdedores. E, a seus olhos, ninguém mais perdedor do que os árabes. A eles foi reservado pelo Ocidente o lugar de paisagem exótica. Exótica e explorada. A terra que importa pelo petróleo e pela paisagem. Talvez por isso Godard dedica tanto tempo a eles. Lá estão as guerras mais recentes, mais selvagens. Ali onde sábios falam em silêncio.
A guerra, a natureza, as catástrofes naturais, a crueldade, as bombas; Godard os vê na natureza do homem, tanto quanto a palavra. É inescapável. Pode-se tomar o lugar dos vencidos, mas a desgraça estará sempre ali.
“Imagem e Palavra” é um filme pessimista, não há dúvida, um filme da contradição, do contracampo: Godard, se quiser, toca o seu velho realejo. Mas, atenção, como sempre seu trabalho tem um vínculo forte com a atualidade, como se fosse um documentário. E, desta vez, ele é nada menos que apocalíptico. Porém, com alguns punhados de planos (de som e imagem) mais uma solidão cósmica, ele nos mostra quanta beleza consegue produzir nosso impulso autodestrutivo.
Há certos cineastas que não convém tentar entender. David Lynch e Godard, por exemplo. Entende-se melhor, talvez, entrando na sua música, deixando-se levar pela correnteza de associações que faz, que por vezes nos levam a outras paragens, outros raciocínios, e quando voltamos ao filme as coisas já são outras, passaram como imagens gravadas no vento. Mas a música ficou lá. E é formidável.
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