Máfia é alegoria da mutação chinesa em novo filme de Jia Zhan-ke

Com 'Amor Até as Cinzas', diretor volta a retratar a voracidade que modifica tradições do país

Cena do filme 'Amor Até as Cinzas', de Jia Zhang-Ke, em cartaz na Mostra de SP

Cena do filme 'Amor Até as Cinzas', de Jia Zhang-Ke, em cartaz na Mostra de SP Divulgação

Guilherme Genestreti
Cannes (França)

Há uma imagem recorrente nos filmes do cineasta chinês Jia Zhang-ke. Trata-se da hidrelétrica das Três Gargantas, que forçou a inundação de cidades inteiras ao longo do curso do rio Yangtze para saciar a voracidade da superpotência asiática.

Símbolo maior da megalomania chinesa, a usina atravessa o premiado “Em Busca da Vida”, de 2006, e também dá as caras em “Amor Até as Cinzas”, filme mais recente do diretor e que aporta no país como parte da programação da Mostra de Cinema de SP.

Encenada ao longo de 16 anos, a história acompanha a saga de Qiao (Tao Zhao), devotada namorada de um gângster. No começo do filme, ela e os bandidos confraternizam em boates ao som de “YMCA”, do Village People, e mantêm rituais de fidelidade, evocados pela bebida que compartilham de uma mesma bacia. 

O ano é 2001, mas tudo remonta a uma China atrasada, que ainda dança ao som de músicas de outras décadas e se atém a rituais antiquados. Em certo ponto, tanto a protagonista quanto seu namorado são presos. Quando ela sair da cadeia, cinco anos depois, deixará de reconhecer o entorno e todos os seus códigos. 

Fica claro, desde o começo, que a minguante Jianghu, a máfia local, será metáfora das tradições de um país em mutação. E Qiao, a testemunha.

“A Jianghu é uma subcultura que desafia o ‘mainstream’ no meu país. E hoje se transformou em algo que pouco tem a ver com o passado”, disse o diretor a este repórter, durante o Festival de Cannes, onde o longa estreou em maio deste ano. “É a alegoria perfeita para se falar de certa perda da memória coletiva na China.”

Por meio de personagens que estão sempre a vagar, Jia se firmou como o grande cronista das mudanças de seu país, do embate entre o tradicional e o moderno, e entre o país fechado e o da abertura econômica.

Cena do filme 'Amor até as Cinzas', de Jia Zhang-Ke, em cartaz na Mostra de Cinema de SP
Cena do filme 'Amor até as Cinzas', de Jia Zhang-Ke, em cartaz na Mostra de Cinema de SP - Divulgação

“Amor Até as Cinzas” é carregado de todas essas metáforas, entre elas a do cenário das Três Gargantas.
Jia aproveitou cenas que rodou com a atriz na década passada em seus outros filmes e as incorporou no novo longa, como se elas dissessem respeito à mesma personagem. 

Caberá a Qiao o papel da viajante da vez —e o veículo com o qual o espectador verá a imposição de um novo país.

“Antes, seja por pobreza ou por questões burocráticas, os chineses não saíam do lugar. É por isso que nos meus filmes a ideia do deslocamento é crucial. É o que amplia o horizonte dos personagens”, afirma o diretor de 48 anos, filho de um sujeito que nunca saiu de sua cidade, a empobrecida Fenyang, no norte. 

Perseguido na Revolução Cultural, o pai sempre temeu a repercussão dos filmes do filho. Três deles foram proibidos de passar nos cinemas, mas são vendidos em DVD.

“Amor até as Cinzas” é o filme de maior orçamento da carreira do cineasta. Isso, contudo, não lhe tira o título de realizador independente, na opinião do cineasta. “Dinheiro não é um critério. O que define um cineasta autoral são a linguagem e os temas de que ele trata. Continuo indie”, diz.

Amor Até as Cinzas
(Jiang  hu  er  nv). Direção: Jia Zhang-ke. Elenco: Zhao Tao, Liao Fan e Xu Zheng. 
14 anos. Mostra: qua. (24), às 18h30, no Reserva Cultural; seg. (29), às 14h, no Reserva Cultural; ter. (30), às 16h, no Espaço Itaú Augusta; qua. (31), às 21h10, no CineArte Petrobras

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