Quando um autor resolve pespegar um título como “O Sentido da Existência Humana” num livro de menos de 200 páginas, a primeira impressão é que é impossível não decepcionar o leitor com esse ato de soberba. A não ser, é claro, que o autor em questão seja Edward Osborne Wilson.
Aos 89 anos, o biólogo da Universidade Harvard resolveu condensar as principais descobertas da teoria da evolução sobre a natureza do ser humano nesse pequeno volume. O resultado, ainda que de fato fique aquém das expectativas geradas pelo título altissonante, vale a pena: é um retrato iluminador, compassivo e, curiosamente, conservador do que significa ser um membro da espécie Homo sapiens.
Antes de mais nada, trata-se de um retrato essencialmente darwinista, é claro. Para Wilson, o único jeito correto de entender como chegamos até aqui é aceitar as raízes da humanidade como uma forma muito peculiar de grande símio africano, cujos corpos e mentes foram moldados, em todos os detalhes, pelo escultor cego conhecido como seleção natural.
O paradoxo explorado por Wilson, porém, é que essa mesma origem humilde, indistinta das demais formas de vida, deu aos seres humanos uma capacidade de compreender o universo, e de transformar os ecossistemas da Terra, muito superior às de qualquer outra espécie. Esse paradoxo é o principal responsável pelos riscos existenciais que a humanidade enfrenta hoje, segundo ele.
Quem já tem familiaridade com a vasta obra de Wilson dedicada ao público leigo certamente reconhecerá no novo livro pequenos resumos ou ecos temáticos de outros volumes, com sabor de retrospectiva —ainda que possuam charme próprio.
A seção “Outros Mundos”, por exemplo, tem muito da força descritiva e do lirismo de “O Futuro da Vida” (lançado originalmente em 2003), livro no qual o biólogo lançou um apelo pragmático, mas também ético e estético, em favor da biodiversidade ameaçada pela ação humana. Como bom entomólogo (estudioso de insetos), Wilson é especialmente eficaz ao se debruçar sobre o mundo do muito pequeno, da cooperação complexa entre formigas às paqueras bioquímicas de mariposas.
Engana-se, porém, quem presta atenção apenas nos aspectos inegavelmente fofos da retórica de Wilson, considerado por quase todos os que o conhecem como um dos últimos grandes gentlemen da ciência mundial. Ele se mostra mais do que disposto ao pugilato científico quando condensa o conteúdo de sua obra mais controversa, “A Conquista Social da Terra”, de 2013, que despertou a ira de grandes nomes da biologia evolutiva.
É que, nesse livro, o americano, retomando argumentos de estudos recentes em periódicos especializados, desafia a visão ortodoxa sobre a chamada seleção de parentesco ou aptidão inclusiva. Grosso modo, trata-se da cooperação “nepotista” entre organismos aparentados, que aumentaria as chances de eles passarem os genes que compartilham para as gerações seguintes.
A seleção de parentesco explicaria o surgimento das grandes sociedades de insetos —como as colmeias de abelhas, um exército de irmãs estéreis produzidas por uma única rainha-mãe— ou mesmo os primeiros passos das sociedades humanas. Wilson, porém, rebelou-se contra essa ortodoxia, argumentando que, no mundo real, as condições que favoreceriam esse processo seriam raras. De quebra, ainda chama um de seus críticos, o papa da divulgação científica Richard Dawkins, de mero “jornalista”. (Essa doeu aqui.)
Embora reconheça as mazelas inerentes à condição humana —com o tribalismo no topo da lista—, Wilson faz uma defesa apaixonada do lado luminoso da nossa herança biológica, opondo-se, por exemplo, a uma possível manipulação “melhoradora” do DNA da espécie no futuro.
Não adianta sonhar com uma reforma da natureza ou com a colonização da galáxia, defende ele. Só o reconhecimento do caráter frágil e único da biosfera terrestre saciará a fome humana por um sentido da vida.
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