Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

O som, o sentido e a sonsice

Há alguma verdade em clichês como 'árabe agressivo' e 'francês romântico'?

O biólogo britânico Richard Dawkins, durante palestra em São Paulo
O biólogo britânico Richard Dawkins, durante palestra em São Paulo - Fabio Braga - 27.mai.2015/Folhapress

Um tuíte da semana passada deixou o biólogo britânico Richard Dawkins no centro de uma controvérsia. Pode-se argumentar que esse é o lugar preferido do autor de “Deus, um Delírio”, um cientista que milita pelo ateísmo. Nesse caso, porém, há uma novidade: a controvérsia tem fundo linguístico.

Para legendar um retrato seu em que aparece tomando sol num banco de parque da aprazível cidade de Winchester, no sul da Inglaterra, Dawkins disparou um torpedo gratuito na direção do islã e da cultura árabe em geral. “Ouvindo os adoráveis sinos de Winchester, uma de nossas grandes catedrais medievais”, escreveu. “Tão mais agradável do que o agressivo ‘Allahu Akbar’. Ou será que isso é apenas minha formação cultural?”

“Allahu Akbar” é uma expressão de devoção do islã que significa “Deus é o maior”. Aparece em orações e ainda na fala do dia a dia, desprovida de solenidade, como “Graças a Deus” em culturas cristãs. Tornou-se também uma expressão sinistra desde que terroristas do Estado Islâmico começaram a repeti-la aos brados como “assinatura” de seus atentados.

 A islamofobia do tuíte de Dawkins fica evidente num golpe baixo que debatedores de redes sociais aplicam o tempo todo, mas que um cientista da envergadura dele, mesmo estando de folga e não sendo um cientista da linguagem, deveria evitar: a naturalização interessada do que é pura história.

As vadias considerações do cientista num bucólico banco de parque plantado no centro daquele que já foi o maior império do mundo nos induzem a associar o som de sinos cristãos e o som de palavras árabes respectivamente a bonito e feio, paz e guerra, bem e mal. As Cruzadas, por exemplo, nunca existiram.

“Será que é apenas minha formação cultural?” é uma pergunta sonsa que, tendo como única resposta razoável um enfático SIM, está ali para sinalizar a possibilidade do não.

Não se trata, aqui, de chicotear Dawkins por seu tuíte. Ele já apanhou bastante. Gostaria de aproveitar a deixa (“o agressivo Allahu Akbar”) para falar da ideia de que cada língua carrega em sua massa acústica uma vocação universalmente evidente a quem não a fala, um espírito inscrito no próprio som.

Em outras palavras, estamos falando de clichês que correm mundo: o francês é romântico, sussurrante, sedutor; o italiano é dramático e cômico, sempre exagerado; o árabe e o alemão são agressivos, rascantes; o português brasileiro tem a alegria das vogais solares enquanto o lusitano se ensimesma, tristonho, em consoantes duras.

Ouvidos pela revista americana The Atlantic sobre a tirada de Dawkins, diversos linguistas enfatizaram algo que chega a ser banal de tão óbvio: a ideia da agressividade do árabe e todas as outras do gênero são determinadas pelas percepções extralinguísticas que temos a respeito dos falantes dessas línguas. Não moram no som, mas na cultura: “É apenas minha formação cultural”. Preconceitos crescem nesse solo como mato.

A conversa fica mais instigante quando deixamos o óbvio para trás e entramos num terreno pouco explorado: o das relações entre som e sentido que parecem ser, sim, universais, apontando para algo semelhante a uma “natureza” compartilhada por pessoas de diferentes culturas. 

A experiência clássica nesse campo é a que pediu a gente de variadas formações que associasse uma forma arredondada e uma angulosa às palavras “bouba” e “kiki”. Deixo ao leitor a resposta sobre qual forma correspondeu a qual som para a maioria esmagadora da humanidade. A sinestesia existe. 
Usar essa ideia de forma não mistificadora é que é o desafio.

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