Zadie Smith volta ao passado para refletir sobre o racismo atual em novo livro

Trama de 'Ritmo Louco', romance da autora britânica, retrata a amizade de duas jovens mestiças

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A escritora britânica Zadie Smith
A escritora britânica Zadie Smith - Divulgação
João Lourenço
Nova York

Ano 2000. Ela mal encara o famoso entrevistador americano Charlie Rose. Esconde-se atrás de óculos de armação pesada e um boné preto —na época, ainda não usava o tradicional turbante. 

Ela poderia ser uma garota qualquer de 24 anos, mas é Zadie Smith e acaba de lançar “Dentes Brancos”, livro que viria a ser um best-seller internacional. Desde então, Smith figurou em capas de revistas, recebeu prêmios e honrarias, convites para jantar com presidentes, entrou em listas de melhores da sua geração. Ou seja, virou celebridade. 

Quando ligo para a autora, quase 20 anos após tudo ter começado, ela atende em tom animado. Logo diz que ainda não se sente completamente confortável em ter que defender o seu trabalho. 

“Não gosto de sentir que estou me vendendo. Muitos ainda me veem como uma celebridade, mas mal imaginam como a minha rotina é banal. Às vezes, passo o dia inteiro atrás de tarefas de criança ou serviços domésticos”, conta a escritora.

“Consigo me manter incógnita porque minha fama surgiu antes da bolha das redes sociais. A pressão chega a ser cruel para os novos escritores. A primeira responsabilidade do escritor é com o seu trabalho e não com essa autopromoção sem fim.” 

Hoje, aos 42 anos, a autora britânica mora na ilha de Manhattan, em Nova York, com o marido, Nick Laird, também escritor, e um casal de filhos. 

“Foi importante sair de Londres. Sempre me senti debaixo da sombra dos escritores ingleses. Aqui sou mais livre, mas mantenho a necessidade de me provar. Prestígio não significa segurança. Literatura não é uma ciência exata. Escritores não melhoram a cada livro. Não há garantias. Não quero que o leitor compre o livro apenas porque o meu nome está na capa.”

O título estampado na capa do novo livro de Smith, “Ritmo Louco”, foi emprestado do filme homônimo de 1936. Estrelado por Fred Astaire e Ginger Rogers, o longa acompanha a relação de um sapateador e uma dançarina. É um dos filmes favoritos da autora. 

Ao contrário dos romances anteriores, desta vez Smith não embarcou em longos processos de pesquisa. “Ritmo Louco”, que será lançado no Brasil em novembro, é um produto da escassez de tempo. 

“Tudo muda quando você tem dois filhos pequenos em casa. Tive de me virar com o que tinha ao alcance. Usei referências, artistas e interesses que sempre acompanhei. Esse processo se mostrou revelador. Eu me vejo como uma escritora mais forte. Hoje, sei que posso trabalhar com menos e sem me preocupar com grandes truques.” 

Ela começou o livro após ter uma noção clara sobre humor, senso de tempo e espaço. “Assim como uma pintura, livros têm cores, sombras e sensibilidades. O resto é secundário. Queria algo que soasse como uma dança, uma canção. Quis representar uma energia de movimento”. 

A ideia de como confundimos memória e tempo também esteve presente em toda a construção do romance. 

“Vivemos no agora, mas o passado ainda toma muito a nossa atenção, está próximo da nossa mente. Em comparação com a prosa, que é mais linear, acho que a música consegue captar melhor esse ‘feeling’ de transição entre presente e passado, então tentei me apoiar nisso”, diz Smith. 

“Ritmo Louco” acompanha uma narradora sem nome. Ela e a melhor amiga, Tracey, se conhecem durante aulas de dança do bairro. Enquanto a narradora é apaixonada pela história dos musicais, apenas Tracey demonstra talento natural para a dança. 

Elas são meninas pardas, filhas de pais brancos e negros. Tracey é criada com liberdade excessiva por uma mãe branca e escandalosa, já a narradora vive sob constante pressão e julgamento de uma mãe jamaicana engajada com problemas políticos e sociais. 

Mesmo quando se deteriora, a relação entre as meninas tem papel fundamental nos questionamentos de identidade da narradora. Alternando entre passado e presente, “Ritmo Louco” passa pela paisagem de Londres dos anos 1980 e 1990 e chega à África Ocidental contemporânea. 

Em linhas gerais, o romance explora os conflitos da culpa, as ilusões e mentiras que contamos para sobreviver. Tais sentimentos não são estranhos para a autora. 

“Carrego culpa por muitas coisas que não posso controlar. Assim como a narradora, também mentimos para nós mesmos diariamente. Para mim, a autoilusão é tão simples e automática como respirar”, ela afirma. 

Para os iniciados, “Ritmo Louco” é um prato cheio. Aqui, Zadie Smith volta a abordar assuntos que domina e ajudaram a colocá-la no radar —conflitos familiares, o papel e o lugar da mulher negra na sociedade, questões sobre feminismo, privilégio e luta de classes. 

E ela não parece querer agradar ninguém. Smith deixou de lado as lições históricas e o didatismo que, às vezes, atrapalhavam os seus romances anteriores.

No passado, Smith foi criticada por ser muito política. “O tipo de ‘assunto’ que eu sou: uma mulher negra e filha de imigrantes é inerentemente político —pelo menos é assim que todos me observam. Você entra no mundo como uma espécie de assunto e não pode ignorar como é visto, tratado e qual papel desempenha estruturalmente na sociedade”, diz a autora.

No entanto, Smith não acredita ter passe livre para falar sobre os problemas que costumam assolar as minorias. 

“Não acredito em permissão por via genética. Tive de ganhar esse espaço por meio de conhecimento, interesse e preocupação. O escritor branco pode abordar os mesmos assuntos, mas ele enfrenta mais dificuldades por falta de experiência. Cresci consciente sobre raça e problemas sociais. Isso me moldou e, claro, vai refletir no meu trabalho”, defende a escritora. 

Em “Ritmo Louco”, Smith reflete sobre uma sociedade polarizada e desigual. E lembra a importância da tolerância em tempos sombrios. Na vida real, essa é uma habilidade quase impossível para ela. 

“Não lido bem com essa questão. Apesar de ter uma tendência a me interessar por pessoas horríveis, sei que sou intolerante e crítica. Como escritora, procuro acessar um lado melhor, mais generoso. Convencer o leitor a sentir algo por alguém desprezível é uma habilidade extraordinária”, afirma a escritora.

Diante de uma América intolerante, onde as minorias e quem vive à margem sofrem diariamente na mão daqueles que deveriam protegê-los, Smith e o marido vivem em um estado constante de ansiedade. 

“Esse ressurgimento da supremacia branca me assusta. Temo como isso vai afetar meus filhos. Meu marido cresceu na Irlanda do Norte. Aqui ele é lembrado constantemente que é um homem branco e não irlandês. Retiro meus filhos dos Estados Unidos sempre que possível, mas não tem para onde fugir. Talvez isso seja bom, pois a única solução que temos é enfrentar esse problema de frente.”

Smith deseja que a geração de seus filhos aprenda a não pensar tanto em raça e, no lugar, direcione esse tempo e energia para coisas mais produtivas. “A nossa obsessão com raça e pertencimento suga a nossa criatividade, suga o nosso melhor, a nossa habilidade de se sentir como um ser humano completo”, afirma a romancista.

Enquanto caminhamos por estradas incertas, Zadie Smith volta suas armas para o terreno da ficção. Ela ainda nutre ambições por aquilo que chama de “ponto mágico”, algo que apenas alguns escritores encontram. 

“Nós continuamos escrevendo porque queremos que o leitor pense como nós. Tem a ver com controle. Tentar fazer que o leitor siga nossa linha de pensamento soa opressivo, mas ao mesmo tempo é sedutor. Esse é o ponto mágico. É quando o leitor e o autor se transformam em um único ser.”

 

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