Fundamentalismo religioso é tema de filmes que reagem à ascensão da direita

Produção autoral esmiúça radicalismos cristãos em filmes da Mostra de SP

Cena do filme 'A Prece', de Cédric Kahn

Cena do filme 'A Prece', de Cédric Kahn Divulgação

Guilherme Genestreti
Berlim e Toronto

​O corpo de Thomas se contorce enquanto o garoto sofre efeitos da abstinência de heroína em suas veias. Seus espasmos, contudo, parecem um êxtase espiritual ou, mais precisamente, o expurgo de um demônio.

A semelhança não é coincidência. No filme francês “A Prece”, a desintoxicação do corpo comunga com a purificação da alma. Destaque da Mostra de São Paulo, o longa de Cédric Kahn faz parte de uma leva de produções que cutucam os vários matizes do fundamentalismo cristão. 

Incensados em festivais estrangeiros, filmes como “O Mau Exemplo de Cameron Post”, “Boy Erased”, “First Reformed” e “Apostasy” elegem o cristianismo como maior alvo.

A escolha não tem nada de aleatório numa era em que o cinema autoral se posta à esquerda e como uma força de oposição à arrancada galopante da direita política, abastecida por uma moral religiosa. 

Numa das cenas de “Boy Erased”, quando o jovem homossexual Jared (Lucas Hedges) é forçado por um pastor a “fingir até parecer” hétero, a farpa parece destinada ao vice-presidente americano. Evangélico, Mike Pence é acusado de ser defensor das chamadas terapias de “cura gay”.

O longa de Joel Edgerton é análogo a “Cameron Post”, sobre uma garota lésbica que, assim como Jared, é forçada a passar uma temporada num campo de reeducação sexual mantido por radicais religiosos. A obra, que também faz parte da programação da Mostra de SP, acabou levando o prêmio principal do Festival Sundance, meca do cinema indie nos Estados Unidos.

Já a fé católica é o cerne de “A Prece”. Quando o filme começa, o viciado Thomas (Anthony Bajon, vencedor do prêmio de melhor ator no Festival de Berlim) é largado numa clínica de reabilitação no sopé dos Alpes franceses. Mantido por uma freira, o lugar separa homens e mulherers e tem nas rezas diárias a essência do tratamento. O entorno suntuoso e isolado inspira a ascese e a ideia de que há uma força divina ao redor.

Relutante e agressivo no início, Thomas vai se rendendo ao longo da trama num filme que, embora não demonize a fé católica, põe em dúvida a sua onipotência redentora. 

“O tipo de transcendência é comum a ambos [religião e  dependência química]”, disse o diretor Cédric Kahn em Berlim, em fevereiro. “Eles rezam com uma obsessão que os permite esquecer as drogas.”

Orações e álcool preenchem a rotina do reverendo anglicano Toller, vivido por Ethan Hawke em “First Reformed”. O longa de Paul Schrader alterna entre imagens de tranquilidade etérea, repletas de corpos que levitam, e prenúncios de cataclismos bíblicos —tempestades, secas, desastres.

“O estrago já está feito. Não há nada mais que possamos fazer como guardiões da Terra”, diz Schrader, ressoando o tom apocalíptico de seu longa, ao encontrar este repórter num bar em Toronto, onde ele apresentou a produção. 

O diretor, dono de uma reverência mítica em Hollywood após roteirizar “Taxi Driver” e “Touro Indomável”, conta que se considera um “cineasta espiritual e que sempre quis dirigir um longa espiritual”. 

Teólogo de formação, e criado numa família de calvinistas rígidos, Schrader só foi ver um filme pela primeira vez aos 17 anos. “Não consigo dissociar a experiência cinematográfica da religiosa por isso.”  

A afirmação soa estranha ao se considerar que ele povoou as telas com histórias cruas, noturnas e perversas. Mas o personagem de Hawke não é assim tão diferente do taxista psicótico que Robert De Niro fez na obra mais conhecida escrita pelo cineasta.

Ambos os personagens são párias num mundo corrompido. Com câncer terminal e assolado diante do iminente colapso ecológico do planeta, Toller questiona suas crenças. As preocupações de seu superior hierárquico, reverendo com um apetite mundano por dinheiro, contribuem para todo esse seu desencanto. A solução para o protagonista esbarra no martírio. 

Schrader divide com o personagem principal o mesmo fatalismo, só que o seu, voltado ao futuro do cinema. Ponta de lança da geração que sacudiu Hollywood nos anos 1960 e 1970 com longas ousados, o cineasta é hoje cético. 

"Foi uma era de turbulência, e os filmes estavam no centro do debate público. Quando o público encara os filmes com seriedade, então fica mais fácil para fazer filmes sérios. Aqueles dias não voltarão, cara.”

A Prece
(La Prière). Direção: Cédric Kahn. Elenco: Anthony Bajon, Damien Chapelle e Hanna Schygulla. 
14 anos. Mostra; Ter. (23), às 17h30, no Espaço Itaú Frei Caneca; sex. (26), às 21h20, no Reserva Cultural; seg. (29), às 16h30, no Espaço Itaú Augusta

O Mau Exemplo de Cameron Post
(The Miseducation of Cameron Post). Direção: Desiree Akhavan. Elenco: Chloë Grace Moretz, Forrest Goodluck e Sasha Lane. 16 anos. Mostra: Ter. (23), às 14h, no Espaço Itaú Augusta; qui. (25), às 17h30, no Espaço Itaú Frei Caneca

Erramos: o texto foi alterado

Uma versão anterior do texto citava um projeto de roteiro brasileiro sobre fundamentalismo religioso que foi reformulado e agora não trata mais do assunto.

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