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'Roma' entra para a história como primeiro filme para streaming a vencer grande festival

Leão de Ouro em Veneza, longa de Cuarón fala da relação entre elite e proletários no México dos anos 1970

Cena do filme

Cena do filme "Roma", de Alfonso Cuarón, que está na programação do Festival de Veneza e do Festival de Toronto Divulgação

Bruno Ghetti
Veneza

A festa mexicana em Veneza continua. Um ano após a vitória de “A Forma da Água”, de Guillermo del Toro, a mostra italiana volta a coroar um diretor do México com o Leão de Ouro a “Roma”, de Alfonso Cuarón.

Como ocorreu com o filme de Del Toro, deve ser o primeiro passo de uma trajetória que poderá terminar em Oscar  —de longa em língua estrangeira (é falado em espanhol) ou, quiçá, de melhor filme. 

Pouco importa que o presidente do júri deste ano fosse o próprio Del Toro. “Roma” tem qualidades tão inquestionáveis que ninguém ligou muito para a patriotada. 

Produzido pela Netflix, o filme entra para a história também como o primeiro longa feito para o sob demanda a ganhar um grande festival. Cannes ainda resiste ao streaming, o que cada vez mais parece uma batalha perdida. 

"Roma" trata da relação entre elite e proletários no México dos anos 1970, por meio da história de uma indígena que trabalha como doméstica em um lar burguês. Memorialista, inspira-se na própria infância de Cuarón, que dedica o filme à sua babá (Roma é o nome do bairro onde foi criado).

O filme é de um preto e branco vistoso e magistralmente bem dirigido —fala ao zeitgeist de 2018 ao trazer uma protagonista indígena, pobre e mulher. Mas há um certo desacerto no tratamento dos personagens da elite, ora vistos sob a luz da caricatura, ora com uma condescendência da qual um filme de caráter realmente emancipador se esquivaria. Mas "Roma" paira acima de eventuais defeitos e foi quase unanimemente elogiado.

O 75º aniversário do festival teve uma seleção caprichada, mas os novos trabalhos de nomes como Mike Leigh ("Peterloo"), Luca Guadagnino ("Suspiria") e Laszlo Nemes ("Sunset") decepcionaram.  

 
Além de "Roma", talvez apenas dois outros filmes de fato entrem para a posteridade. Um deles é "Nuestro Tiempo", do mexicano (mais um) Carlos Reygadas, incursão sem concessões a uma história de um relacionamento aberto. Hermético como é, natural que fosse ignorado pelo júri. O outro é "The Favourite", produção britânica do grego Yorgos Lanthimos. Este, sim, mais um filme que deve ir com tudo na temporada de prêmios.

É uma cáustica comédia de época, sobre duas mulheres que disputam a atenção de uma rainha inglesa. Foi duplamente laureado, com justiça, em Veneza: melhor atriz para a britânica Olivia Colman, brilhante na pele da monarca, e Grande Prêmio do Júri.

O prêmio de melhor ator foi outro acerto: Willem Dafoe faz talvez o melhor Van Gogh já visto no cinema, no longa “At Eternity’s Gate”. O foco não é tanto na vida do pintor, mas em sua criação artística. Dafoe praticamente garante, assim, presença no Oscar.

Uma das grandes polêmicas deste festival foi a presença de uma só mulher na competição: a australiana Jennifer Kent, com “The Nightingale”. O filme levou o prêmio Especial do Júri, deixando claro que os jurados preferiram marcar também uma posição política.

O filme desperdiça a boa premissa da amizade entre uma mulher e um aborígene, na Austrália do século 19, como elemento empoderador contra a opressão colonial. A visão de Kent é por demais binária —Veneza certamente tinha inscrições de filmes dirigidos por mulheres mais consistentes para incluir na disputa. 

O troféu de direção para o francês Jacques Audiard, por "Os Irmãos Sister", é discutível. É um belo filme sobre companheirismo, que desconstrói uma série de clichês dos longas de faroeste. Mas o trunfo ali é o roteiro, sensível e inteligente. Assim, o prêmio dá a impressão de ser um reconhecimento ao valor desse bom longa.

Foi outro western, porém, quem abocanhou o prêmio de roteiro, "A Balada de Buster Scruggs", filme menor dos irmãos Coen. É uma homenagem a vários estilos de faroeste, por meio de seis episódios morais. Mas a verdade é que nenhum deles tem uma mensagem realmente marcante —alguns parecem até bem gratuitos. Parece prêmio por falta de opção melhor.

Por fim, o Brasil teve uma participação relegada à presença em mostras paralelas, mas com passagem positiva pelo Lido. “Deslembro”, de Flavia Castro, sobre uma brasileira criada na França que volta ao Brasil após a ditadura, foi elogiado no boca a boca entre jornalistas. “Domingo”, de Clara Linhart e Fellipe Barbosa, mostrou o quanto nosso cinema pode surpreender, em um filme sobre um churrasco em uma casa de campo burguesa no dia da posse de Lula, em 2003. 

Por fim, o comovente documentário “Humberto Mauro” resgata a obra do importante diretor de “Ganga Bruta” (1933). André di Mauro, o diretor, explicou que ao menos cem dos curtas do cineasta se encontram arquivados em boas condições. Ainda assim, Humberto Mauro parece cada vez mais esquecido. A esperar que esse belo documentário ajude a desfazer essa injustiça. 

Veja a lista completa dos vencedores do 75º Festival de Cinema de Veneza

Seção oficial

Leão de Ouro: "Roma", de Alfonso Cuarón
Leão de Prata de melhor diretor: Jacques Audiard, por "The Sisters Brothers"

Grande Prêmio do Júri: "The Favourite", de Yorgos Lanthimos
Prêmio Especial do Júri: "The Nightingale", de Jennifer Kent

Copa Volpi de melhor atriz: Olivia Colman, por "The Favourite"

Copa Volpi de melhor ator: Willem Dafoe, por "At Eternity's Gate"

Melhor roteiro: Ethan y Joel Coen, por "The Ballad of Buster Scruggs"

Prêmio Marcello Mastroianni de melhor intérprete revelação: Baykali Ganambarr, por "The Nightingale"

Seção Horizontes

Melhor filme: "Manta Ray", de Phuttiphong Aroonpheng
Melhor diretor: Emir Baigazin, por "Ozen"

Prêmio Especial do júri: “The Announcement", de Mahmut Fazil Coskun
Melhor atriz: Natalya Kudryashowa, por "The Man Who Surprised Everyone"

Melhor ator: Kais Nashif, por "Tel Aviv on Fire"

Melhor roteiro: Pema Tseden, por "Jinpa"

Melhor curta metragem: "Kado", de Aditya Ahmad
Prêmio Luigi di Laurentiis de melhor estreia: The Day I Lost my Shadow, de Soudade Kaadan

Seção VR

Melhor filme de realidade virtual: "Spheres", de Eliza McNitt
Melhor experiência em realidade virtual: "Buddy VR", de Chuck Chae
Melhor história de realidade virtual: "L'île des morts", de Benjamin Nuel

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