Descrição de chapéu

Peça 'Estado de Sítio' deslumbra visual e musicalmente, mas trama não anda

Com encenação de Gabriel Villela, peça de Albert Camus retrata chegada alegórica da Peste

Elenco de 'Estado de Sítio', de Gabriel Villela

Elenco de 'Estado de Sítio', de Gabriel Villela Lenise Pinheiro/Folhapress

Nelson de Sá
São Paulo

“Estado de Sítio” tem quadros belíssimos. A própria cortina traz uma estrela gigantesca, como o cometa citado na peça e como aquela na capa de sua primeira edição francesa, de 1948, mas em renda, com fios escapando.

Já se evidencia ali, nos minutos que precedem a apresentação, a felicidade da reunião do diretor e figurinista Gabriel Villela com o cenógrafo J.C. Serroni —e deles com as alegorias do autor, Albert Camus (1913-60).

A impressão irá se repetir em diversas cenas, ao longo da encenação.

Talvez a imagem mais persistente, que depois volta sem parar à memória, é aquela em que o próprio Cometa, o ator Nathan Milléo Gualda, vestido de noiva e com uma sombrinha branca, atravessa lentamente o palco, de um lado ao outro, com um sorriso grotescamente irônico preso na cara. Balança compassadamente a sombrinha, espargindo o pó também branco que a cobre.

Anuncia a vinda da Peste, mas o significado da imagem, sua funcionalidade na trama, se perde no impacto visual, em sua beleza.

Outros quadros mostram integração semelhante do diretor com os diretores musicais Babaya Morais e Marco França, este também intérprete, em acúmulos alegóricos tortuosos e ecléticos.

Os números corais encantam, mas são as interpretações vocais singulares de Mariana Elisabetsky e Rosana Stavis que, a exemplo do Cometa, perseguem depois a memória do espectador.

Elizabetsky já causava efeito parecido em “Boca de Ouro”, espetáculo anterior de Villela e ao qual o diretor também acrescentava canções ao ponto de transformá-lo quase num musical.

Neste, a atriz e cantora cresce, com papel um pouco mais central, Vitória, que opõe seu amor por Diego (Pedro Inoue) à Peste e à Morte.

De maneira geral, percebe-se na adaptação e na encenação uma tentativa de lançar pontes para o presente político do país, mas o resultado é superficial —até porque elas são retiradas às pressas, com medo declarado, no programa da peça, de se aproximar de um panfleto.

Villela nunca foi ou quis ser diretor político, propriamente, e o texto de Camus pouco acrescenta, tamanhas as pistas falsas que amontoa, em todas as direções.

O resultado de tanto empenho em não tomar posição é que não se consegue tirar qualquer lição clara de “Estado de Sítio” para o Brasil neomilitarista, a Espanha franquista de 1948 ou para o autoritarismo em geral.

Mais importante, Camus não é um dramaturgo atento à carpintaria, ao desenvolvimento tanto dos personagens quanto da ação, o que é amplamente reconhecido —e com certeza do conhecimento do diretor.

Seria possível remediar tanta interrupção de andamento, tanta declamação em detrimento de diálogo, com ajustes de encenação, mas não é o que Villela buscou em sua montagem, tanto visual como musicalmente.

As cenas em que há maior atenção à trama, à busca de um norte dramático, são aquelas protagonizadas pelos experientes Elias Andreato, a Peste, e Claudio Fontana, a Morte.

Com maior liberdade e aprofundamento de atuação, lembram por vezes uma dupla cômica, ainda que mais para o sarcasmo autoritário do que para a piada. Expressam assim, de fato, um pouco do que se anuncia pelo mundo, nos tempos de hoje.

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