“Estado de Sítio” tem quadros belíssimos. A própria cortina traz uma estrela gigantesca, como o cometa citado na peça e como aquela na capa de sua primeira edição francesa, de 1948, mas em renda, com fios escapando.
Já se evidencia ali, nos minutos que precedem a apresentação, a felicidade da reunião do diretor e figurinista Gabriel Villela com o cenógrafo J.C. Serroni —e deles com as alegorias do autor, Albert Camus (1913-60).
A impressão irá se repetir em diversas cenas, ao longo da encenação.
Talvez a imagem mais persistente, que depois volta sem parar à memória, é aquela em que o próprio Cometa, o ator Nathan Milléo Gualda, vestido de noiva e com uma sombrinha branca, atravessa lentamente o palco, de um lado ao outro, com um sorriso grotescamente irônico preso na cara. Balança compassadamente a sombrinha, espargindo o pó também branco que a cobre.
Anuncia a vinda da Peste, mas o significado da imagem, sua funcionalidade na trama, se perde no impacto visual, em sua beleza.
Outros quadros mostram integração semelhante do diretor com os diretores musicais Babaya Morais e Marco França, este também intérprete, em acúmulos alegóricos tortuosos e ecléticos.
Os números corais encantam, mas são as interpretações vocais singulares de Mariana Elisabetsky e Rosana Stavis que, a exemplo do Cometa, perseguem depois a memória do espectador.
Elizabetsky já causava efeito parecido em “Boca de Ouro”, espetáculo anterior de Villela e ao qual o diretor também acrescentava canções ao ponto de transformá-lo quase num musical.
Neste, a atriz e cantora cresce, com papel um pouco mais central, Vitória, que opõe seu amor por Diego (Pedro Inoue) à Peste e à Morte.
De maneira geral, percebe-se na adaptação e na encenação uma tentativa de lançar pontes para o presente político do país, mas o resultado é superficial —até porque elas são retiradas às pressas, com medo declarado, no programa da peça, de se aproximar de um panfleto.
Villela nunca foi ou quis ser diretor político, propriamente, e o texto de Camus pouco acrescenta, tamanhas as pistas falsas que amontoa, em todas as direções.
O resultado de tanto empenho em não tomar posição é que não se consegue tirar qualquer lição clara de “Estado de Sítio” para o Brasil neomilitarista, a Espanha franquista de 1948 ou para o autoritarismo em geral.
Mais importante, Camus não é um dramaturgo atento à carpintaria, ao desenvolvimento tanto dos personagens quanto da ação, o que é amplamente reconhecido —e com certeza do conhecimento do diretor.
Seria possível remediar tanta interrupção de andamento, tanta declamação em detrimento de diálogo, com ajustes de encenação, mas não é o que Villela buscou em sua montagem, tanto visual como musicalmente.
As cenas em que há maior atenção à trama, à busca de um norte dramático, são aquelas protagonizadas pelos experientes Elias Andreato, a Peste, e Claudio Fontana, a Morte.
Com maior liberdade e aprofundamento de atuação, lembram por vezes uma dupla cômica, ainda que mais para o sarcasmo autoritário do que para a piada. Expressam assim, de fato, um pouco do que se anuncia pelo mundo, nos tempos de hoje.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.