Descrição de chapéu Artes Cênicas

Gabriel Villela revê alegoria de Albert Camus ao totalitarismo

'Qualquer semelhança com a política recente é mera coincidência', afirma diretor, que encena 'Estado de Sítio'

Maria Luísa Barsanelli
São Paulo

Vestida de um manto preto, que encobre a estampa rubra de motivos japoneses da sua roupa, uma espécie de chifre retorcido sobre a cabeça, a Peste chega retumbante à cidade espanhola de Cádis.

Assusta os moradores, depõe o governo, instaura ali um regime totalitário e prenuncia: "Falta-lhes o patético".

É assim irônico e sem traços de piedade que o argelino Albert Camus descreve sua metáfora do totalitarismo em sua peça "Estado de Sítio". O escritor se baseava nos regimes ditatoriais que assolaram a Europa depois da Primeira Guerra, em especial o franquismo espanhol, mas bem que o texto poderia aludir a casos contemporâneos.

"Qualquer semelhança com a política recente é mera coincidência", brinca o encenador Gabriel Villela, que agora assina uma montagem do texto.

Quando iniciou o projeto, há mais de um ano, não imaginava refletir a atualidade, mas a obra de Camus acabou ressoando os dias de hoje, diz o encenador, lembrando a intervenção militar no Rio. "Isso não é normal, e nos acostumamos com essa anormalidade. A vida foi se juntando com uma grande alegoria."

A alegoria de Camus concentra-se não à toa na pequena Cádis, península no litoral andaluz, rodeada pelo mar e por fortificações —sua história é marcada por conquistas.

Submissa ao seu governador, que defende a monotonia local —"Os bons governos são aqueles em que nada acontece"—, a cidade é então surpreendida pela chegada da Peste (interpretada por Elias Andreato) e por sua secretária, a Morte (Claudio Fontana).

Aproveitando-se do estado inerte de Cádis, a tirana instaura ali um regime de terror, com a suspensão de liberdades. E só é contestada por um jovem enamorado casal, Diego (Pedro Inoue) e Vitória (Mariana Elisabetsky), que lidera uma revolta contra a tirana.

A metáfora se assemelha um tanto ao romance "A Peste", do próprio Camus, mas o argelino negava que a peça seria adaptada do livro. Ele teria se inspirado na ideia do colega Antonin Artaud de que o teatro deveria ser como uma peste, ter a força de uma epidemia.

Camus faz de seu "Estado de Sítio" uma "tragédia da inteligência", como define Villela. Constrói seu texto numa estrutura semelhante a uma tragédia grega, especialmente na forte presença do coro.

Aqui, ele ganha cânticos trágicos e diversos, como músicas ciganas do bósnio Goran Bregovic?, outras cantadas em ladino (dialeto judaico falado na Penísula Ibérica) e canções revolucionárias, caso do hino da Resistência Francesa.

Todas arranjadas em cantos polifônicos e trabalhadas em intensidades distintas, de forma a serem costuradas ao texto falado, explica Babaya Moraes, que divide a direção musical com Marco França .

Isso reforça a unidade descrita por Camus: aqui, importa menos o indivíduo e mais a força do conjunto, tanto que muitos personagens são chamados apenas pela profissão.

O contraponto é a figura do Nada (Chico Carvalho), que comenta com sarcasmo a tragédia. "Vocês não estão em ordem, mas já maduros para a calamidade", diz logo de início.

O niilista, um tanto deslocado do restante dos personagens, como se fosse um narrador das cenas, representa um pouco da filosofia do autor.

"Camus cria o pensamento dele em cima da não esperança. A contradição é que a não esperança é uma libertação", afirma o diretor-assistente Ivan Andrade, que dirigiu há alguns meses "O Mal-Entendido", outra peça do argelino.

Como de praxe, Camus representa a mudança por meio da força da natureza. É o vento e o mar, tão odiados pela Peste, que podem destruí-la.

As alegorias do argelino casam bem com a linguagem de Villela, habituado ao barroco, ao teatro popular e à colagem de influências. Mas aqui deixa de lado o colorido costumeiro e faz um visual quase todo preto —um pouco da úlcera do totalitarismo, segundo ele.

Tudo é feito no contraponto de branco e preto, das maquiagens grotescas, inspiradas nas pinturas negras de Francisco de Goya, à iluminação fria e ao cenário de J C Serroni, repleto de galhos secos. No alto do palco, cria uma estrutura de ramos negros contorcidos, espécie de nuvem negra a prenunciar maus tempos.

Estado de Sítio

  • Quando Qui. a sáb., às 21h, dom., às 18h. Estreia 8/11. Até 16/12
  • Onde Sesc Vila Mariana, r. Pelotas, 141
  • Preço R$ 12 a R$ 40
  • Classificação 14 anos
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