Descrição de chapéu

Série que mostra Anitta 'gente como a gente' é jogo de marketing

Falta visão crítica sobre cantora, que apenas reforça marca da artista e mascara vulnerabilidades

Lulie Macedo

Uma das características que mais se atribuem a Anitta é sua habilidade mercadológica. A capacidade de manejar os mecanismos da indústria a seu favor e entregar números exuberantes, jogando o ROI (“return of investiment”, ou retorno do investimento, em marquetês) na cara de todo mundo. Foi assim com “Check Mate”, o projeto que é pano de fundo da série documental “Vai, Anitta”, parceria com a Netflix. 

Desse ponto de vista, considerando que Anitta é, sim, uma marca, pensa como marca e se comporta como marca, não espanta que ela tenha incorrido no mesmo equívoco de outras empresas ao produzir conteúdo —excesso de autorreferência. Achar que está contando uma história, mas, no fim, entregar um anúncio.

Se o formato documental é a “verdade de cada um”, como já definiu o crítico Amir Labaki em um dos principais livros sobre o gênero, a verdade de Anitta nessa série é, na realidade, uma estratégia de convencimento. Ela quer provar para nós, usando como linguagem a “realidade”, que ela é “gente como a gente”.

Em três horas de filme (ou seis episódios de 30 minutos), os bastidores da estratégia desenhada para lançar quatro singles e quatro vídeos, um por mês, no final do ano passado, são o esquema usado para distribuir outro produto, a Anitta versão “humanizada”. 

E é sobre essa “mensagem” que a série se constrói, a de quanto Anitta é dedicada, profissional, talentosa, gente fina, humilde, faz caraoquê e churrasco no fim de semana, pegadinha com os amigos, dá bronca na equipe, sofre, chora, faz cocô.

Mas é quando toca nas vulnerabilidades que a marca Anitta deixa de praticar algumas das demandas mais urgentes do marketing hoje: autenticidade e transparência (sim, há demanda para a prática, ainda que essas buzzwords, as palavras da moda, estejam mais no plano do discurso).

Em um dos episódios, por exemplo, Anitta fala sobre depressão. Chora, diz que nem sempre “está bem”. Mas em nenhum momento ouvimos seu posicionamento (para usar outra buzzword) sobre saúde mental, autocuidado ou o estigma da doença. Não se sabe de que modo a depressão a afeta ou afetou, se interfere em seu trabalho e de que modo e a quais ferramentas ela recorreu para lidar com isso. 

Outro momento é quando fala das plásticas que fez. Afirmar-se empoderada o suficiente para decidir o que fazer com o rosto não é o bastante. Especialmente porque essa marca conhece seu poder de fogo. Sim, o corpo de Anitta é político, mas apenas quando lhe convém —faça esse jogo: tente descobrir quais são as marcas que investiram na série.

Recurso básico do formato documental, as entrevistas são: com assessor, empresários, equipe, família. No planeta Anitta, não existe muito espaço para visão crítica.

O contexto que cerca uma marca com tantos “brand lovers” (amantes de marcas), como se diz, é central para entender por que importa pouco tudo o que foi dito até aqui, neste texto —ou em qualquer outro espaço que se arrisque a ser uma voz dissonante.

Quando são convencidas pelo “propósito” da marca —e, no caso de Anitta, o arquétipo da heroína ou vencedora cai como uma luva—, os fãs, ou “brand lovers”, trabalham de graça. As pessoas querem ter no que acreditar. Anitta lhes oferece isso.

Ainda que fique no rasinho de questões que ela teria potência suficiente para impulsionar, como autoestima entre mulheres e adolescentes periféricas, ou o aumento nos casos de depressão e suicídio entre jovens no Brasil, Anitta prefere, como tantas marcas, não correr riscos.

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