Descrição de chapéu Artes Cênicas

Teatro Oficina remonta 'Roda Viva', de Chico Buarque, e ecoa eleição de Bolsonaro

50 anos depois, companhia atualiza musical, que foi proibido pelo regime militar; atores foram agredidos e sequestrados

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Roderick Himeros (no alto, à dir.) como Ben Silver na nova versão de "Roda Viva" Lenise Pinheiro/Folhapress

São Paulo

“Vamos seguir o conselho da Fernanda Montenegro: acordar e cantar”, comenta José Celso Martinez Corrêa. Sentado à meia-luz dos janelões laterais do Teatro Oficina, o diretor fala sobre a remontagem de um dos maiores marcos de sua companhia, o musical “Roda Viva”.

A estreia, nesta quinta (6), chega aos trancos. Já estava planejada desde o ano passado, quando Chico Buarque autorizou a reencenação de sua obra, mas não havia dinheiro.

O grupo até recorreu a um financiamento coletivo na internet, com meta de arrecadar R$ 790 mil para a reforma do teatro —a última manutenção grande foi há seis anos— e preparação do espaço para o espetáculo, mas as doações só chegaram a 12% do valor.

O novo “Roda Viva” sai depois de um auxílio do Itaú Cultural, que custeou os ensaios, e do Sesc, que pagou pela estreia do trabalho na unidade da Pompeia (os valores não foram divulgados). Depois, o espetáculo segue temporada no próprio Teatro Oficina.

Feita 50 anos depois do original, a remontagem segue o exemplo do que o grupo fez no ano passado com “O Rei da Vela”, uma das obras precursoras do tropicalismo —o espetáculo terá novas sessões no Auditório Ibirapuera, uma contrapartida com o Itaú Cultural, administrador da sala.

Mas, se no novo “O Rei da Vela” buscaram bastante fidelidade ao original de 1967, “Roda Viva” terá mais atualizações, diz Zé Celso. Não apenas por mudar referências datadas, mas por reverberar o Brasil de hoje, pós-eleições.

Afinal, a peça trata da construção e da queda de um ídolo, o cantor Benedito Silva (agora vivido por Roderick Himeros). Com a ajuda do Anjo da Guarda (Guilherme Calzavara), espécie de empresário, e do Capeta (Joana Medeiros), o músico é alçado à fama sob o nome artístico Ben Silver. 

Quando o personagem já não lhe serve mais, é transformado numa figura bem brasileira, Benedito Lampião. O ciclo não para, até que Benedito é completamente engolido pela indústria cultural.

Chico falava à época da potência da TV, mas na nova versão há referências à internet e às redes sociais. “Hoje a força está mais nas redes do que na televisão. Nós estamos numa guerra de vida ou robotização”, diz o encenador.

A peça não deixa, porém, de ecoar as últimas eleições, com uso massivo de WhatsApp e disseminação de fake news. E também a ideia de “mito” que se criou em torno do presidente eleito Jair Bolsonaro.

Logo de início, o Anjo explica a Benedito: “Vamos contaminar até viralizar, até em presidente eleito eu posso te tornar”. Em outro momento, Ben faz uma live, transmitida por um celular gigante numa das pontas do palco, com uma bandeira do Brasil ao fundo. Fala asneiras e coisas desconexas, e o povo aplaude efusivo.

“Mas o espetáculo não é sobre o presidente eleito, vai além disso. Essa coisa do mito é antiga, mostra como é uma coisa frágil e como ele pode ser removível”, afirma Zé Celso. “No fim, é sobre devorar o messianismo” —não à toa, a cenografia original de Flávio Império é repleta de referências religiosas, de santos católicos a ritos de candomblé.

Entram em cena alusões a ídolos sertanejos e youtubers, mas há sempre menções à recente ascensão de ideologias conservadoras e extremistas. “Neste momento difícil, temos que acreditar na democracia. O grande rito da liberdade agora é a arte”, diz o encenador.

“A gente aprendeu que ‘Roda Viva’ é aquela peça que foi proibida e nunca mais foi feita. Quando começamos a remontar a peça, era só uma homenagem, mas agora, num momento em que parece que a censura está chegando de novo, ela virou um manifesto pela liberdade”, diz o ator Marcelo Drummond, que interpreta Mané, amigo de Benedito, um boêmio de visão realista.

As censuras, afinal, marcaram a história de “Roda Viva” logo depois de sua estreia, em janeiro de 1968, no Teatro Princesa Isabel, no Rio. 

Em julho daquele ano, o CCC (Comando de Caça aos Comunistas) invadiu o Teatro Galpão, de Ruth Escobar, onde o musical fazia uma temporada paulistana. Cenários e camarins foram destruídos, e parte do elenco, como a atriz Marília Pêra, foi espancada pelo grupo paramilitar.

Já em Porto Alegre, três meses depois, soldados foram ao hotel onde os artistas estavam hospedados, agrediram o elenco e o embarcaram num ônibus de volta a São Paulo. 
A atriz Elizabeth Gasper e seu marido, Zelão, foram sequestrados por algumas horas.

Logo depois, o musical sofreu censura do regime militar, que considerou o espetáculo “degradante”, “subversivo” e que “desrespeita a todos e tudo, até a própria mãe” —há muitos palavrões e numa das cenas dilaceram um pedaço de fígado pingando sangue. Um censor chegou a questionar se Chico era débil mental por ter escrito a peça.

Mas mesmo depois da ditadura o compositor tardou a liberar os direitos, já que considerava fraca a peça, sua estreia na dramaturgia. Acabou dando aval depois do acirramento, no ano passado, da disputa entre Zé Celso e Silvio Santos, que tem planos de construir torres ao lado do Oficina.

Ainda cedeu os direitos de “As Caravanas”, do mais recente álbum do músico. “Fui ao show dele e pedi. É uma música maravilhosa. Fala da invasão das favelas e também dessa onda de migrações”, conta o diretor, que abre a nova montagem com a canção, exibindo em telões imagens diversas de fluxos de imigrantes.

A multidão dialoga com o coro, grande força da peça, segundo o encenador. “O coro trata cada pessoa como protagonista. Mas eu nunca mais pude contar com aquele coro que estreou ‘Roda Viva’ em 1968, que foi mesmo uma coisa transcendental”, diz ele, que agora aumentou o número de integrantes do coro para 20 —no original eram 13.  ​

Eles ganham peso em especial na canção-título, quando giram e enredam o protagonista, e na música “Cordão”, gravada em 1971 por Chico e incluída na nova versão do musical. É ela quem fecha o espetáculo com os versos “Ninguém vai me acorrentar/ Enquanto eu puder cantar/ Enquanto eu puder sorrir”.

Zé Celso parece estar seguindo os conselhos de Fernanda Montenegro.

 

Roda Viva

Qui. (6) a sáb. (8), às 20h, dom. (9), às 18h, no Sesc Pompeia, r. Clélia, 93. De 23/12 a 10/2/2018, no Teatro Oficina, r. Jaceguai, 520. Sex. e sáb., às 20h, dom., às 19h. Extras: 23/12, às 14h30, 25/12 e 31/12, às 20h. Ingr.: R$ 5 a R$ 60. 18 anos

O Rei da Vela
Sex. (14) e sáb. (15), às 20h, dom. (16), às 19h, no Auditório Ibirapuera, av. Pedro Álvares Cabral, s/ nº, pq Ibirapuera, portão 2. Ingr.: R$ 30. 14 anos

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