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Guerra cultural faz censores buscarem meandros legais para impor cartilha

No Rio, Wilson Witzel evocou quebra de contrato para proibir realização de performance com nu

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Como protesto, atriz realiza performance censurada pelo governo Wilson Witzel na calçada da Casa França-Brasil, no Rio, na última segunda (14)
Como protesto, atriz realiza performance censurada pelo governo Wilson Witzel na calçada da Casa França-Brasil, no Rio, na última segunda (14) - Pilar Olivares/Reuters
São Paulo

Há uma censura à solta que não gosta de dizer o próprio nome. E é algo que, se não é exatamente novo, tem se tornado mais comum nos últimos três anos, com o acirramento da polarização política no país e do embate entre direita e esquerda na cultura.

Em vez de um veto oficial a obras de arte, com uma estrutura estatal e funcionários dedicados a isso, a ferramenta é apelar à lei ou a qualquer tipo de norma para impedir obras de serem encenadas, expostas ou exibidas de qualquer modo ao público.

O primeiro mês de 2019 nem tinha chegado à metade quando surgiu o primeiro exemplo do ano. O governo Wilson Witzel (PSC), no Rio de Janeiro, mandou que a exposição “Literatura Exposta”, na Casa França-Brasil, fosse fechada um dia antes do previsto —o encerramento da mostra teria uma performance do coletivo És Uma Maluca com nudez feminina. No fim, a obra foi apresentada na calçada, sem mulher pelada.

Mas, para Witzel, não se trata de censura. Apenas o contrato foi descumprido pelos organizadores, já que o documento não informava que haveria uma “performance humana” com nudez, disse ele em entrevista no domingo (13). “Essas circunstâncias precisam ser avaliadas previamente, até por questões da Vara da Infância e Juventude”, acrescentou.

Uma expressão em inglês ajuda a iluminar a situação: “lawfare”, que junta as palavras “law” (lei) e “warfare” (guerra). Seria exagero definir o caso como “assédio judicial”, uma possível tradução para o português , mas o conceito serve para entender o que tem acontecido nas artes.

A ideia da “lawfare”, que costuma ser mais empregada na política internacional, é usar as leis contra um inimigo. Para calá-lo, por exemplo. Essa prática não estaria interessada na realização da justiça, mas em fazer um uso abusivo do sistema legal para levar uma agenda adiante.

No campo da liberdade de expressão, deveria preocupar a sociedade o fato de a guerra cultural dar sinais de que pode instrumentalizar o próprio direito —sem dúvida, esta é uma das tendências para se acompanhar com atenção neste ano.

No campo da direita, que tem ganhado a batalha nesse campo, o fenômeno é claro. A peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, em que Cristo é representado pela atriz trans Renata Carvalho, acumula episódios de censura por onde passa. Em Jundiaí, chegou a ser proibida por uma liminar da Justiça no ano passado.

Nos episódios envolvendo o "Queermuseu", no Santander Cultural, em Porto Alegre, e a performance “La Bête”, do bailarino Wagner Schwartz, no Museu de Arte Moderna de SP, opositores apelavam para a inexistência de classificação indicativa e falavam em incentivo à pedofilia.

Em 2017, a Polícia Civil de Campo Grande recolheu o quadro “Pedofilia”, de Alessandra Cunha, de uma exposição no Museu de Arte Contemporânea do Mato Grosso do Sul. A medida foi tomada depois que um grupo de deputados registrou um boletim de ocorrência contra a mostra.

É instrutivo ver as palestras e entrevistas do procurador da República Guilherme Schelb, que foi cotado para assumir o Ministério da Educação e é uma das principais lideranças conservadoras a disseminar a ideia de que a esquerda usa o marxismo cultural para dominar o Brasil.

Em novembro, no Congresso do Ministério Público Pró-Sociedade, organizado por ativistas conservadores da instituição, Schelb falava sobre como o direito pode ser usado na guerra cultural. Ele dizia que o crime de importunação sexual pode servir para combater a exposição de atos obscenos a crianças e adultos.

As lideranças conservadoras se apropriam de pautas da esquerda e as invertem. A importunação, antes contravenção penal, foi transformada em crime por uma lei da senadora Vanessa Grazziotin, do PCdoB, no ano passado —a ideia original era criminalizar o assédio que mulheres sofrem no transporte público.

A própria classificação indicativa, evocada contra obras de arte, dividia esquerda e direita quando esta tinha liberais à frente. Estes costumavam ver nela uma tutela indevida do Estado em uma área que seria de responsabilidade das famílias.

Em uma palestra de 2017, na Igreja Presbiteriana de Pinheiros, Schelb exibia imagens do “Queermuseu” e, em seguida, evocava artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente —normalmente visto por certos setores da direita como uma forma de proteger bandido.

“Tudo o que eu mostrei é ilegal. O ECA diz que imagens de órgãos sexuais [...] são impróprias para crianças”, afirmava o procurador na ocasião. “Quando há finalidade libidinosa, é crime até.”

A esquerda, assim, se verá em um paradoxo. Defensora do investimento público na cultura, ela tem uma dependência extrema do Estado brasileiro —e, com isso, artistas ficam ainda mais vulneráveis à censura com verniz de legalidade.

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