Livro-testamento do arquiteto Lucio Costa volta a catálogo após 20 anos

'Registro de Uma Vivência', do criador de Brasília, reúne miscelânea de escritos

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Museu das Missões (em primeiro plano), projeto de Lucio Costa em São Miguel das Missões (RS)

Museu das Missões (em primeiro plano), projeto de Lucio Costa em São Miguel das Missões (RS) Acervo Lucio Costa

São Paulo

Há 20 anos, deu-se a dupla desaparição. 

Em 13 de junho de 1998, o arquiteto Lucio Costa morria, aos 96 anos. Mais ou menos na mesma época, foi se extinguido “Registro de Uma Vivência”, sua obra-testamento, que estava na segunda edição.

O livro, um volume de mais de 600 páginas, teve uma primeira vida curta. Lucio Costa já tinha 93 anos quando se decidiu a elaborá-lo. 

“Chegou um dado momento em que senti a obrigação de dar o meu recado”, disse em entrevista a Mario Cesar Carvalho, publicada na Folha em 1995 e reproduzida no volume. 

“Senão, eu morrendo, as interpretações dos meus atos, da minha vivência, poderiam ser erradas. Achei conveniente me antecipar”, seguia. 

Maria Elisa Costa, filha de Lucio e arquiteta como o pai, assina dois breves textos introdutórios ao “Registro”. 

À Folha diz que “a ideia do livro surgiu quando Alberto Xavier publicou, à revelia dele, um conjunto de seus textos, com o título de “Sobre Arquitetura”, o que deixou Lucio indignado”, como o próprio Xavier lhe contaria.

“Registro” nasceu do projeto feito a mão por Lucio num bloco quadriculado que Maria Elisa deu ao pai para esse fim, seguido à risca desde a primeira edição, com pequenos acréscimos nesta terceira.
Por isso é tão peculiar o volume —que, segundo Maria Elisa, “não é um livro sobre Lucio Costa, é o próprio Lucio, em forma de livro”. 

Nele se encontram desenhos do jovem Lucio estudante de artes, ao lado de fotos de família, projetos esquecidos, perfis de outros arquitetos, recordações e cartas e muitos escritos profissionais. 

Nas palavras do arquiteto e professor da FAU-USP Guilherme Wisnik, é “uma espécie de enigma que ele deixa para a gente decifrar”. “Quando a gente pega para folhear é como se estivesse dentro de um labirinto”, diz, ressaltando a “organização sui generis”, não cronológica da obra. 

Mesmo o sumário vem num lugar incomum, no final do livro, à francesa, antes dos apêndices —um dos quais é um índice onomástico, acréscimo bem-vindo da nova edição, que deixa clara a vastidão dos temas tratados por Lucio.

Mas, diz ainda Wisnik, autor de “Lucio Costa” (Cosac Naify, 2001), esse labirinto particular é “muito coerente com o modo que ele pensava, que é articular os assuntos de interesse público com os de interesse pessoal, tudo junto”.

Esse aspecto é ressaltado pela historiadora e crítica de arquitetura Sophia da Silva Telles no posfácio, “Ensaio sobre a Utilidade Lírica”.

“Em Lucio Costa —é uma suposição apenas— parece ecoar a lembrança do ‘menino inglês’, certo ideal da vida privada em que sentimentos e afetos mantêm a mesma civilidade que qualquer ação pública”, escreve no texto, recordando a educação do jovem Lucio no Reino Unido. 

Tanto Silva Telles, no texto, quanto Wisnik entendem que a posição de Lucio Costa era, mais do que a de arquiteto realizador, a de ideólogo. 

“O fato de ser um erudito, um grande crítico e personagem fundamental para a política da arquitetura no país”, escreve ela, “não o obrigaria, entretanto, a uma obra construída igualmente significativa”. 

“Ele tinha essa vocação para a sombra, de certa forma”, diz Wisnik. “Mas o que acho que é principal é que ele sabia que a arquitetura que fazia não era uma arquitetura-show, suficiente para o tamanho do espetáculo que precisava para levantar  a arquitetura moderna brasileira.”

Para o arquiteto e pesquisador Alexandre Benoit, que estuda o conceito de tradição em Lucio Costa em seu doutorado na FAU-USP, o “discreto e recluso” Lucio é “paradoxalmente peça-chave sem a qual a arquitetura moderna não existiria no país”.

“Seu protagonismo assumiu diversas formas, de pioneiro a teórico do movimento. ‘Registro’ representa sua última e muito bem pensada carta: narra em detalhes sua trajetória, enquanto dita os termos de como quis ser lembrado.”

Lucio Costa iniciou a carreira praticando a arquitetura “de estilo”. Assinou várias casas com a gramática do neocolonial, que mais tarde chamaria de falso colonial, pelo emprego de elementos fora de lugar —por exemplo, características de arquitetura sacra aplicados a residências.

Em Brasília, cujo plano piloto desenhou —o que é muitas vezes esquecido pelo público leigo, que a vê como a cidade “de Niemeyer”—, somente a torre de TV leva sua firma. Do alto dela, diga-se, se contempla a sua verdadeira criação.

Sua obra construída mais representativa é o Parque Guinle, conjunto residencial em Laranjeiras, no Rio, ao qual aplicou sua leitura do vernáculo colonial que apreendeu observando Diamantina.

Apreendeu ou inventou, como muito se discute. 

Lucio Costa seria crucial para a preservação patrimônio brasileiro; chefiou a divisão de tombamentos do Sphan, antecessor do Iphan, de 1937 até 1972, e deixou valiosos escritos sobre o tema.

Ser pai do moderno e do patrimônio no país, como o define Wisnik, não são responsabilidades dissociadas em Lucio. Antes, se entrelaçam.

Esse entrelaçamento é um dos pontos nodais na discussão sobre o papel de Lucio na compreensão e no estabelecimento de um moderno brasileiro. 

Para construir sua genealogia, ele parte de Diamantina, “que não tem grandes igrejas, mais recolhida, menor, civil”, como diz Benoit. 

O pensador renegou de início —em texto que não coligiu no “Registro”— o gênio de Aleijadinho em favor da figura do “velho portuga”.

O epíteto é atribuído aos anônimos mestres de obras portugueses, que teriam feito a adaptação da tradição lusa para a colônia. O caminho, como o vê Lucio, está resumido no texto “Documentação Necessária”, de 1938. 

Nele, em uma série de desenhos, traça a família que começa nas casas do século 17 e evolui, como se naturalmente  para o rigor racionalista de uma casa dos anos 1930. Como se fosse o destino do Brasil ser moderno.

Não à toa, é o Parque Guinle ilustra a capa da nova edição do “Registro”, em substituição ao retrato do próprio autor.

Para Milton Ohata, editor do livro, o conjunto é o “projeto-síntese” de Lucio, porque “aponta para esse jeito de morar brasileiro, mas aponta para Brasília”, quanto à escala, ao uso dos pilotis e da vegetação, além do senso de proporção.

Para Ohata, o livro-testamento se inseriria na linhagem das grandes interpretações do país, “comparável a ‘Raízes do Brasil’ ou ‘Casa-Grande e Senzala”; ou talvez uma espécie de formação da arquitetura brasileira.
Esse é o verbo que aparece na opinião de Wisnik. “Lucio sabia que era preciso formar uma arquitetura, era preciso ter um conjunto sólido”. “Ele tinha um poder muito grande no texto, construiu essa visão e foi bem-sucedido.”

Registro de uma Vivência
Lucio Costa. Ed. 34 e Edições Sesc São Paulo. R$ 150 (666 págs.)
 

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