Mostra recupera traços tortos e eletricidade faiscante de Tàpies

Artista espanhol é alvo de exposição um tanto discreta em galeria paulistana

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Tela de Antoni Tapiès mistura técnicas diversas
"Díptic amb Fusta", pintura e madeira sobre tela, de 1983 - Cortesia Bergamin & Gomide
São Paulo

Os quadros de Antoni Tàpies são gritos surdos, muros cegos violentados como pele tatuada à revelia
do dono, couro queimado.

Toda a espontaneidade inocente no traço, rabiscos acidentais só na superfície, parece traída e negada por um pano de fundo cruel. Sua obra de composições cinzentas, telas encharcadas de cimento, argila, areia e lama, é a radiografia crua de tempos sangrentos, um estado de nervos dilacerados ainda incapaz de vislumbrar qualquer futuro.

Um dos maiores nomes da arte do século passado e figura de transição entre dois momentos da vanguarda europeia atravessada pela guerra, o artista espanhol é alvo agora de uma mostra um tanto discreta —13 de suas obras da década de 1970 em diante lotam as salas da Bergamin & Gomide, uma galeria paulistana no térreo de um prédio dos Jardins.

Não é pouco. É fato que Tàpies já teve uma retrospectiva no país há 15 anos, quando ainda estava vivo, e também participou de edições históricas da Bienal de São Paulo, entre elas a de 1953, a mesma que mostrou “Guernica”, de Picasso. Mas, em tempos de extrema polarização política e diante do que parece ser um esgotamento das possibilidades do presente, suas obras recuperam aquela eletricidade faiscante que tinham na raiz.

Tàpies é um artista forjado pela destruição da Guerra Civil Espanhola, o mesmo conflito alegorizado pelos bichos estrebuchantes e mulheres lacrimejantes de Picasso, além de ser um observador atento da reconstrução da Europa arrasada pela Segunda Guerra, uma coleção de cidades à deriva tentando colar seus cacos.

“Ele cria uma abstração que parece ruína, um muro degradado, um objeto arqueológico”, diz Carles Guerra, da Fundação Antoni Tàpies, em Barcelona, instituição que guarda grande parte do acervo do artista. “São superfícies muito densas, de pó de mármore, vernizes distintos, e, no entanto, as suas obras se tornaram ícones muito célebres.”

Talvez porque sejam testemunhos incontornáveis de um inconsciente coletivo que desaprendeu a sonhar diante da barbárie. Suas telas são lápides, murmúrios resignados.

E, se lembram ruínas, essas obras ostentam sua condição de rastro ultrapassado com certa latência, uma vida que pulsa entre os escombros mesmo que calada na superfície, a casca grossa da pedra, da lama e da areia que afoga qualquer resquício de luz ali.

Muitos, aliás, já viram nesses fósseis plásticos de Tàpies um reflexo de um presente imóvel, a vida encarcerada. 

Não são as prisões imaginárias, os labirintos fantásticos de Piranesi, mas o presídio ordinário de um passado recente agora revivido, a prisão política de muros vandalizados pelos últimos suspiros de um protesto inaudível.

Tanto que uma das obras agora na mostra paulistana são seis orelhas talhadas em baixo relevo numa placa de areia. O ditado sobre paredes que têm ouvidos se funde ao monocromo plácido e agreste, uma placa de terra na parede.

Na base da composição, está o que parece ser uma equação matemática, uma sequência de signos mudos, aquilo que se perde no silêncio forçado.

Tàpies, volta e meia, retorna a essa caligrafia, traços tortos, esqueletais que não deixam de se revelar plenos, num contraste com fundos fuliginosos.

Sua operação plástica emoldura o desespero. Mas há dúvidas se o artista retrata aquele que se debate até o último respiro ou se suas obras já seriam um flagra da noite posta. O grau de tragédia é palpável.  


É o que ele deixa ver com suas portas lacradas, às vezes janelas, só pedaços cegos de madeira, portais interditados. Ou noutra composição, em que um coração rudimentar, antepassado de um emoji da atualidade, está separado de um traço solitário por aquilo que parece ser uma faixa de terra desabitada, uma triste zona desmilitarizada entre estratégias e sentimentos, carne fraca e máquina forte e bruta.

Não espanta que a história tenha reservado a Tàpies o papel de pioneiro a gritar a  morte da pintura. O que se representa ali é a negação plástica, o tormento calado, um bicho que desiste de lutar. É a ruína da pintura como campo fecundo de esperanças frouxas, ainda tortas e sem rumo. 

Antoni Tàpies
Galeria Bergamin & Gomide - r. Oscar Freire, 379, tel. (11) 3853-5800. Seg. a sex.: 10h às 19h. Sáb.: 10h às 15h. Abre ter. (12). Grátis.

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