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Cinema

À parte o terrorismo verbal, 'Milagre' não nos leva a parte alguma

Tudo configura uma espécie de cristianismo indolor e raso como o olavismo

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Milagre

  • Quando Estreia nesta quinta (4)
  • Classificação 12 anos
  • Produção Brasil, 2019
  • Direção Mauro Ventura

Veja salas e horários de exibição

Com os discípulos de Olavo de Carvalho temos aprendido coisas preciosas. Por exemplo, que a Terra é plana e apenas um complô científico nos leva a crer em outra coisa. Passamos também a saber que o nazismo não passa de um movimento de esquerda (o fato de os soviéticos terem destruído Berlim com fúria ao fim da Segunda Guerra deve ser fake news).

Deve ser porque somos todos ignorantes nós que não temos a felicidade de receber as luzes do mestre. Para corrigir esse problema chega aos cinemas “Milagre”. Ali se postula como problema o que há muito não preocupava ninguém: o que são milagres, como se produzem, por que e como explicá-los.

Debatem-se com isso Raphael de Paola, Olavo de Carvalho e Wolfgang Smith. São três pessoas no filme dirigido por Mauro Ventura, que conta com exatos três planos, um para cada personagem, mais algumas imagens intermediárias, raramente pastoris, quase sempre de igrejas e catedrais. Um caso de preguiça sobrenatural.

Não é possível reconstituir o palavrório de cerca de uma hora e 20 minutos. Basicamente, ele parte da premissa de que a ciência moderna (ou seja, pós-renascentista) fragmenta o mundo, estuda esses fragmentos, abstrai, mas não tem noção de conjunto. Ou, como diz, salvo erro, Paola, existe uma tensão cognitiva entre conhecimento científico e fato concreto. Em palavras menos arrevesadas: a ciência não produz conhecimento real sobre coisa alguma.

Tomemos, resumidamente, um exemplo do próprio Carvalho. Não existe, diz ele, a menor proximidade entre a inteligência humana e a de qualquer outro ser vivo. Eis aí, portanto, a hipótese darwinista da evolução negada, a partir do fato (para ele o fato é o princípio e o fim das coisas) de ser a espécie humana a única dotada de linguagem. Sendo a teoria da evolução uma farsa, só existe uma explicação plausível para tamanha diferença. Mesmo que não esteja dito, trata-se da explicação bíblica. É ali que Olavo encontra Damares.

Diante do milagre, o raciocínio é mais ou menos o mesmo: tratando-se de uma intervenção do sobrenatural e não existindo conhecimento humano que o explique, ele só se torna explicável pela análise total do fato. Como tais fatos são inescrutáveis pela inteligência humana, tudo que lhe resta é reconstituir a cadeia de eventos que conduz ao milagre. O que também não explica nada, a não ser pela existência de uma inteligência superior (vulgo Deus).

Não há muito como discutir com esse tipo de argumento, normalmente conhecido como petição de princípio, no qual, para resumir, a conclusão está contida na premissa. À parte o terrorismo verbal contido no palavrório, não se vai muito longe por esse caminho. Pois, caso se der um passo a mais nessas nas indagações, chegaremos à dúvida sobre o que então explicaria a existência dessa inteligência superior? É uma questão a que Carvalho não se dedica, talvez porque a resposta seja forçosamente tautológica: Deus é Deus.

O maior milagre é a concepção imaculada de Jesus Cristo pela Virgem Maria, nos diz Wolfgang Smith. Ou seja, é uma questão de crença: acredita-se ou não. A rigor, não existe conhecimento fora dessa esfera.
“Milagre” nos coloca diante da ideologia da escola sem ideologia em estado mais ou menos puro. Trata-se de um regresso a princípios e crenças que precedem a Idade Moderna (científica), que colocam Deus e os santos no centro de uma Terra —evidentemente central no universo, pois habitada pela inteligência humana, criada pela “inteligência superior. Não é difícil, daí, pular para a Terra Plana. E ninguém duvide que em breve alguém venha sustentar que o Sol gira em torno da Terra (Plana).

Tudo configura uma espécie de cristianismo indolor e raso como o olavismo —é o que aliás postulam as imagens plácidas enxertadas entre as três entrevistas. Nada da fé angustiada de um Pascal a turvar esse mundo de tranquilas certezas, de provas que se empilham, de tão abundantes, da existência de uma “inteligência superior” que torna o inexplicável imediatamente compreensível. Ou, como resume Wolfgang Smith, o que explica o não compreensível é a vontade de Deus.

OK. Mas o problema real, hoje, não é entender como se deu a construção da escada de São José, se ela é milagrosa ou deixa de ser, mas desvendar o que a inteligência superior nos reserva para evitar os desastres do aquecimento global, por exemplo. Sobre isso, nem uma palavra. Mas, como se sabe, aquecimento global é fake news, complô científico-comunista.

É uma conversa que não vai para parte alguma, exceto para o abismo em que termina a Terra Plana.

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