"Um Homem de Afetos", subtítulo dado ao retrato de Dorival Caymmi feito pela documentarista Daniela Broitman, combina duas faces, a pública e a íntima, de um personagem decisivo na construção da nossa música e na projeção disso que até hoje, mundo afora, se entende por Brasil.
Se o lirismo de Caymmi é um paradigma da chamada baianidade, consagrada em músicas e letras tais como " "O que É que a Baiana Tem?" e "Oração de Mãe Menininha", a passagem do tempo vem apagando a face do criador, tão onipresente que quase desaparece em suas criações.
Um registro feito no ano de 1998, uma década antes da morte do lendário cantor-compositor baiano, agrega valor de ineditismo e oferece à diretora um ponto de partida alternativo, que ajuda a ir além das convenções do documentário biográfico.
Este gênero tão adotado quando se pretende recriar o percurso de grandes personalidades tem o inconveniente de ser determinado pela visão dos entrevistados e pela construção de uma imagem sem fissuras, mais próxima da vida dos santos que de seres humanos.
No vídeo, feito num ambiente doméstico, Caymmi conversa com amigos e familiares, evoca memórias, passeia num jardim, canta e brinca. Essas imagens trazem mais evidências da personalidade e das peculiaridades de sua obra do que se conseguiria somente com o recurso habitual da entrevista e do comentário.
O arquivo inédito mostra o tal homem de afetos em sua existência em vez de tentar traduzir esse aspecto impalpável com outros meios.
A vantagem adicional desse material é compensar a falta de "novidade" em termos de fatos ou de reinterpretações sobre o personagem, que já foi objeto dos documentários "Um Certo Dorival Caymmi" (1999) e "Dorival Caymmi "“ Dê Lembranças a Todos" (2018).
As declarações e evocações de Caymmi no vídeo abrem janelas a partir das quais a realizadora retorna a um Brasil cada vez mais remoto. A anedota sobre as origens do verso "é doce morrer no mar", por exemplo, aparece sucedida por imagens do trabalho de pescadores, um modo de mostrar como a transfiguração poética, no lugar de suavizar, deu visibilidade à dureza cotidiana.
Outras camadas do retrato surgem em depoimentos dos três filhos artistas, Dori, Nana e Danilo, da nora, a compositora Ana Terra, da empregada da família, que esteve ao lado do músico em seus últimos momentos de vida, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, que reivindicam a ascendência de Caymmi sobre suas trajetórias musicais.
As falas são marcadas por elogios, mas deixam entrever o homem sob a capa do mito. As intimidades, as peculiaridades do casamento com a esposa, Stella Maris, as infidelidades do artista mulherengo, o alcoolismo e o moralismo são registrados nos depoimentos fornecidos pelos próprios familiares.
As entrevistas com Caetano e Gil se aproximam de outra face. Permitem compreender a posição de Caymmi na cabeça de uma linhagem que pôs a Bahia no mapa, deu sustento à emergência da bossa nova e mais tarde inspirou o tropicalismo. Ou seja, de alguém sem o qual o Brasil não existiria.
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