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Epopeia mítica da civilização maia ganha traduções no Brasil

'Popol Vuh' é mistura de cosmogonia, mitologia e narrativa histórica de índios da América Central

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São Paulo

Tudo se acabava em uma hecatombe de sangue e cinzas enquanto os colonizadores avançavam pelas montanhas e planícies do novo continente. Depois de matar os reis da nação quiché, um dos povos maias nas Américas, diante de uma multidão exasperada, o capitão espanhol Pedro Alvarado escreveu a seu comandante.

"Como conheci de eles terem tanta má vontade para com o serviço de sua majestade e o bem e o sossego desta terra, eu os queimei e mandei queimar a cidade, só lhe deixando os alicerces, porque é tão perigosa e tão forte que mais parece uma casa de ladrões que de povoadores."

Mas algo sobreviveu à devastação de uma forma tão improvável quanto misteriosa, o "Popol Vuh", mistura de cosmogonia, mitologia e narrativa histórica dos quichés --um documento da Antiguidade à altura de obras como a "Odisseia" e o "Gilgamesh".

Agora, o livro do conselho --ou do comum, outra possível tradução-- tem duas versões em português disponíveis nas livrarias. Uma, mais antiga e que ganha reedição, é do escritor Sérgio Medeiros. Outra, lançada agora, é da poeta e tradutora Josely Vianna Baptista, que já havia compilado e vertido para o português uma série de mitos indígenas.

Antes, especulavam que o "Popol Vuh" estivesse escrito em cascas de árvores, com pinturas e hieróglifos, e sobrevivia na tradição oral, só que sem uma redação fixa. Mas, logo depois da conquista espanhola, um índio alfabetizado e catequizado --ou índios, não se sabe-- resolveu verter a obra ao alfabeto latino.

Esse escriba anônimo, que queria preservar a narrativa, já alerta, segundo a tradução de Baptista, logo no começo de sua transcrição: "Revelaremos [o livro] porque não existe mais onde ver o 'Popol Vuh', o instrumento da claridade --que veio lá dos lados do mar-- com os relatos de nossas sombras, o instrumento sobre a aurora da vida".

Esse original está perdido. O texto sobreviveu porque, dois séculos depois, antes de desaparecer, um frade dominicano versado no idioma resolveu copiá-lo e traduzi-lo para o espanhol --versão que seria reencontrada nos anos 1940 por um pesquisador.

Os amantes de Jorge Luis Borges verão algo semelhante aos contos do autor na forma como esse texto chegou até nós. É uma cosmogonia que sobreviveu graças a transcrições, comentários, traduções sucessivas, cada qual com sua dose de interpretação.

Sua história pode ser vista como um labirinto ou um jogo de espelhos, imagens tão caras ao argentino. Não é à toa que, como aponta Sérgio Medeiros em seu posfácio, Borges usou o "Popol Vuh" como referência para "A Escritura do Deus", um dos contos mais famosos de "Ficções".

O texto inspirou outros nomes, como o guatemalteco Miguel Ángel Asturias, Nobel de literatura de 1967, que traduziu a obra e a utilizou de referência em alguns de seus livros.

Mesmo o papa Francisco, quando esteve no México há três anos, causou frisson ao citar o "Popol Vuh" em seu discurso. O pontífice escolheu a descrição que a obra faz do primeiro amanhecer do mundo --"alegraram-se os bichos pequenos e os bicho grandes, todos se levantaram, nas beiras dos rios, nos desfiladeiros". Mais à frente, o livro sagrado maia afirma que, embora já houvesse muitas pessoas, o nascer do Sol foi o mesmo para todas as tribos.

Nenhum dos dois tradutores fala quiché, por isso cada um escolheu seu caminho para verter o texto para o português. Medeiros, durante uma temporada na Universidade Stanford, foi orientado por um dos tradutores para o inglês --e lia com ele, em paralelo, o original. Já Baptista partiu primeiro do texto em espanhol, mas ficou insatisfeita e fez o trabalho cotejando diversas traduções, consultando o quiché para tirar dúvidas, com a ajuda de dicionários.

"Essa tradução é uma aventura existencial. Fiquei obcecada. Via uma árvore e a relacionava ao 'Popol Vuh'. Se você começa a fazer o percurso [de conhecer] todos os curiosos, tradutores, ler os aparatos, você entra numa vertigem", diz a tradutora.

Como toda cosmogonia, o "Popol Vuh" começa com o surgimento do mundo, quando "estava vazio o ventre do céu" e os deuses criam a Terra apenas dizendo seu nome. Em seguida, surgem pássaros, veados, jaguares, cascavéis, jararacas e todos os animais. Os deuses, então, pedem que as criaturas os adorem --mas só ouvem cacarecos e rugidos. Então resolvem inventar o homem.

Os primeiros são feitos de barro, mas a invenção não dá certo porque é muito molenga. Depois, os deuses criam bonecos de madeira, que também foram um fracasso --e a destruição destes é uma das passagens exuberantes do "Popol Vuh".

Primeiro, há um dilúvio, uma chuva que enegrece o céu. Depois, potes, tigelas, panelas, cumbucas se revoltam contra os homens de pau por terem sido colocadas no fogo. Os animais se indignam e os devoram. Quando tentam fugir, as próprias árvores e grutas se voltam contra eles. O homem só dá certo quando é criado a partir do milho.

Além dessa origem mítica, a obra vai contar a história dos quichés, seus monarcas e suas migrações pelo território que ocupavam --e ainda ocupam, são um dos maiores grupos indígenas da Guatemala ainda hoje.

Esse ponto levanta outra hipótese sobre as razões pelas quais o escriba misterioso um dia quis transcrever o "Popol Vuh". Não era só para preservar a obra, mas para dizer ao invasor que aquela terra tinha dono. Ao fim, o redator conclui: "Já está tudo acabado sobre o Quiché, que agora se chama Santa Cruz".

Popol Vuh

  • Preço R$ 99 (384 págs.) e R$ 89 (480 págs.)
  • Autoria Anônimo.
  • Editora Ubu e Iluminuras (respectivamente)
  • Traduções Josely Vianna Baptista e Sérgio Medeiros
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