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'Intelectual errante', Nuno Ramos reúne reflexões sobre cultura e política em livro

Autor de múltiplas habilidades lança conjunto de ensaios 'Verifique Se o Mesmo'

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Brasília

O que haveria de comum nas obras de artistas brasileiros tão díspares como Machado de Assis, João Gilberto, Lygia Clark, Glauber Rocha, Graciliano Ramos, Sergio Camargo e Mira Schendel?

Em todas elas —e em tantas outras— percebe-se “certa dificuldade de expansão, de exteriorização, de embate como mundo”, que acaba retornando “como energia narcísica para a própria obra”, assevera o escritor e artista visual Nuno Ramos, 59, em “Verifique Se o Mesmo”, seu novo livro de ensaios, que colige textos inéditos e já publicados.

Esse circuito interno, segundo Ramos, seria produto da falta de ressonância do objeto cultural no ambiente em que se insere. Assim, “o artista recuperaria, como um Orfeu que sempre olhasse para trás, a energia que emitiu —e que nunca chegou efetivamente do outro lado”.

O autor identifica nesse fenômeno um traço central da produção nacional que vai das “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881) ao “Álbum Branco” de João Gilberto (1973). Os trabalhos de Glauber, Caetano Veloso e Tunga, embora tenham um pé nesse circuito, fariam a passagem para fora dele.

Machado, por exemplo, teria como intuição fundante de sua obra madura a ficcionalização dessa ausência de dimensão pública do objeto artístico. O leitor/leitora, tão presente em seus contos e romances, seria precisamente aquilo que lhe faltava —“opinião pública, embate ideológico consistente, em suma: alguém do outro lado”.

A gênese dessas reflexões, prossegue Ramos, surgiu-lhe da observação dos trabalhos de Hélio Oiticica. “Uma das marcas centrais do Hélio é a vontade de colocar a obra no mundo, retirá-la de qualquer moldura, externalizá-la. Mas ao fazer isso, paradoxalmente, ele acaba criando fendas, dobras, capas, ninhos, num impulso de interiorização.”

Ramos então amplia e metaforiza essa percepção valendo-se de um objeto matemático conhecido como faixa de Moebius —que consiste na colagem das extremidades de um fita após uma delas sofrer meia volta. Essa superfície fechada, na qual interior e exterior se confundem, é a base da obra “Caminhando” (1962), de Lygia Clark, na qual a artista propõe abrir com uma tesoura esse anel.

“Levando o raciocínio ao limite, se a lâmina da tesoura fosse infinitamente fina, seria como se o mundo inteiro virasse um sistema infindável de retorno”, diz. Essa suspensão, esse hiato no tempo sugerido pela obra de Clark, “parece solicitado por muita coisa que fizemos”, escreve o autor, e acaba conferindo à nossa produção um “desejo de extemporaneidade, para fora do momento contemporâneo”.

No fundo, resume Ramos, “busquei, com a ideia da fita de Moebius, encontrar um mecanismo que atua como uma fonte de potência e transforma uma desgraça para o artista —produzir sem público— em liberdade extrema de criação”.

Em “Verifique Se o Mesmo” —o título faz referência à frase estampada, por força de lei, nos elevadores paulistas—, o autor apresenta esse circuito na obra de quatro artistas: João Gilberto, Lygia Clark, Graciliano Ramos e Mira Schendel. 

Para Ramos, o “Álbum Branco” de João, e em especial sua interpretação de “Águas de Março”, com seu loop em eterno presente —a canção é toda construída em torno da partícula “é”—, constitui o exemplo mais bem acabado do ciclo de Moebius descrito. Nos demais artistas, ele apresenta sua hipótese servindo-se de “assuntos insuspeitados nas três obras —a pedagogia, a alfabetização, a leitura”, respectivamente.

Na segunda parte do livro, denominada “Dispersos”, o autor trata de assuntos como futebol (as derrotas por 4 a 0 do Santos para o Barcelona na final do mundial de clubes de 2011 e o 7 a 1 que a Alemanha aplicou no Brasil na semifinal da Copa de 2014), arte (Jorge Guinle, Oswaldo Goeldi, Marina Rheingantz, Marcia Xavier e Pedro Motta), literatura (Becket), samba (Nelson Cavaquinho e Batatinha), entre outros.

O interesse de Ramos por música vai além de sua produção ensaística. Ele possui também prolífica atuação como letrista. Sua mais recente contribuição nessa área aparece no recém-lançado “La Commedia É Finita”, do artista plástico e compositor Clima, que assina com Ramos a maior parte das letras.

Os textos que integram a segunda metade de “Verifique Se o Mesmo” apresentam continuidade temática com “Ensaio Geral” (2001), livro de não ficção anterior do autor. No trabalho pregresso, no entanto, a ideia de ensaio —no sentido daquilo que não está pronto ou formado— era tomada em sua literalidade, com o artista pondo lado a lado projetos de filme, propostas de instalação, rascunhos de memórias e textos reflexivos. Agora, ele escreve, “o leitor vai se deparar com textos mais formatados, na tradição usual de um ‘livro de ensaios’”.

Mesmo assim, os escritos passam longe do academicismo. “Eu sou um intelectual errante, não tenho uma formação consistente. Os ensaios são fruto de um impulso e possuem um fundo um tanto confuso e poético”, diz.

Outra diferença com livro anterior é a presença de dois textos explicitamente políticos, publicados na Folha. “Suspeito”, escrito em 2014, termina com a frase “Suspeito que estamos fodidos”. Em “Gente Frouxa”, do ano passado, Ramos atira contra as forças que progressistas que se mantinham neutras diante do avanço da candidatura de Jair Bolsonaro.

No texto que fecha o livro, “Loser”, o autor se volta para si, numa reflexão sobre o próprio trabalho, que, conforme enxerga, nunca deixou de apresentar certa alma amadorística.

Visto em sua totalidade, “Verifique Se o Mesmo” encerra ainda um fenômeno curioso, pois parece apresentar, também ele, uma espécie de circuito de Moebius. Nos ensaios, Nuno Ramos externaliza análises, opiniões e observações sobre uma série de temas e artistas que ele, há muito, interioriza em seu próprio trabalho, na forma de referências, citações e influências.

Verifique Se o Mesmo
Autor: Nuno Ramos. Ed. Todavia. R$ 64,90 (304 págs.)

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