Referência da Bauhaus, centro de Tel Aviv passa por gentrificação

Distrito da metrópole israelense com milhares de prédios no estilo da escola alemã é um patrimônio da humanidade

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A sala de Walter Gropius, fundador da Bauhaus, com móveis criados por ele na primeira sede da escola Weimar, na Alemanha - Fabrice Fouillet/ ARS, NY/VG Bild-Kunst
Tel Aviv

Há uma esquina em Tel Aviv e, nela, um prédio azul.” A frase do livro infantil “Meus Amigos da Rua Arnon”, escrito em 1953 por Leah Goldberg, é parte indelével da infância dos israelenses. O prédio ainda existe, na bucólica rua, exatamente como em 1934, quando ficou pronto. 

Com três andares, o edifício é um dos ícones do estilo arquitetônico da Bauhaus, que completa cem anos e marcou as primeiras décadas de Tel Aviv, capital cultural de Israel. De 1930 a 1948, havia uma lei a ser seguida na cidade fundada em 1909 às margens do mar Mediterrâneo —todos os novos prédios tinham de seguir as regras da Bauhaus

Em menos de 20 anos, cerca de 4.000 edifícios no estilo europeu foram erguidos, e a Unesco declarou, em 2003, o centro de Tel Aviv —a Cidade Branca— como patrimônio cultural da humanidade. 

Um dos arquitetos dessa tendência era amigo do imigrante romeno Uriel Rosner, que, em 1932, decidiu construir um prédio em Tel Aviv. Da amizade nasceu a casa azul do livro de Leah Goldberg. E foi lá que nasceu Irit Peled, filha de Rosner, que mora no primeiro andar até hoje.

Em homenagem ao pai, ela construiu uma praça em frente ao edifício —que se tornou ponto de visitação— com uma placa que diz: “Em lembrança a nossos pais pioneiros, Uriel e Tzila Rosner, que estão entre os construtores da cidade”.

“Não me vejo em nenhum outro lugar. Crescer aqui foi um privilégio. É como fazer parte da história”, diz Irit a esta repórter. “Vejo muita beleza nesses edifícios. Existe toda uma uma ideologia por trás”.

A ideologia era o socialismo dos arquitetos da época, que buscavam uma arquitetura simples e prática. Tel Aviv se tornou a capital do secularismo, em contraste com a tradição religiosa de Jerusalém e da vizinha e milenar Jaffa. O estilo também se espalhou para cidades como Haifa e Natânia e até mesmo Jerusalém.

A Bauhaus é inconfundível. Os traços limpos (retos ou curvos) sem ornamentos, em geral brancos, com varandas amplas, permeiam as ruas do centro. São funcionais e assimétricos, uma ideia revolucionária para a época.

“As casas não são uniformes, porque não era arquitetura de atacado”, diz Micha Gross, fundador do Centro Bauhaus de Tel Aviv. Segundo ele, a Bauhaus foi criada na esteira da revolução industrial, no século 19, quando os trabalhadores viviam como sardinhas nas cidades. 

Os arquitetos europeus, de tendência socialista, tentaram resolver o problema com a ideia de prédios simples e com áreas externas para que os trabalhadores pudessem cultivar frutas e verduras.

A Bauhaus foi uma escola de artes, artesanato e arquitetura fundada na Alemanha pré-nazismo pelo arquiteto Walter Gropius —durou de 1919 a 1933. Com a ascensão de Hitler, alguns alunos deixaram o país, entre eles arquitetos judeus que migraram para a Palestina pré-Estado de Israel.

Ao chegarem a Tel Aviv e arredores, eles se uniram a outros profissionais da região. “Na época, o engenheiro responsável por Tel Aviv, Ben Sira Shifman, decidiu proibir o estilo eclético com frufrus e enfeites”, conta Gross. “Ele exigiu um visual inovador de estilo modernista. O ideal eram prédios práticos, racionais, com telhados planos e gesso branco. A proibição só acabou com a criação de Israel, em 1948.”
A Cidade Branca engloba, hoje, 10% da área de Tel Aviv, com algo em torno de 4.000 prédios, 1.600 deles tombados. Os donos não podem demolir nada ou mudar fachadas sem seguir regras rígidas. 

Ao todo, cerca de 150 arquitetos foram responsáveis por ajudar a cidade a lidar com uma grande onda de imigração nas décadas de 1930 e 1940, movimento que tornava urgente a necessidade de abrigar os recém-chegados. 

Os que não eram alemães eram, em geral, da Rússia, da Ucrânia ou da Polônia. Só seis dos arquitetos estudaram mesmo na Bauhaus, mas os outros foram influenciados pelos ideais da escola.

“Eles viam no modernismo o desenvolvimento e o avanço da tecnologia”, diz Gross. “Esses arquitetos promoveram o funcionalismo. Tentaram adaptar as casas ao clima e às demandas locais, à sociedade, à topografia, ao clima. Mas não conseguiram muito. São quentes demais no verão e frias no inverno.”

Com o crescimento da cidade, nas décadas de 1960 e 1970, as áreas no estilo Bauhaus passaram por um período de negligência e empobrecimento. Quem quisesse preservar um prédio sofria com as regras rígidas da prefeitura. 

Mas tudo mudou depois do tombamento pela Unesco. A contradição é que o centro de Tel Aviv começou a passar por um processo de gentrificação que dura até hoje.

“Não dá para conservar 100% o tempo todo. Havia pessoas que nem sequer tinham dinheiro para viver, muito menos para preservar”, conta Ruby Peled, marido de Irit, membro da comissão que deu norte às reformas. “Sugerimos uma lei pela qual os donos estariam autorizados a adicionar um ou dois andares aos prédios. Ao vender novos apartamentos, teriam dinheiro para preservar os prédios.”

Hoje, um quarto dos prédios tombados foram renovados. Até donos de edifícios não tombados estão fazendo renovações. Ainda há edifícios antigos, caindo aos pedaços, entre as novas construções e os novos estilos, do brutalismo das décadas de 1950 e 1960 aos arranha-céus.

O centro de Tel Aviv vai celebrar o centenário da Bauhaus com uma série de eventos e exposições. Uma mostra sobre os trabalhos dos arquitetos Josef Rings e Erich Mendelsohn foi exibida até março. Em junho, a praça Diezengoff será celebrada, e há visitas guiadas no centro sobre os cem anos da Bauhaus.

Irit Peled, a “menina” do prédio azul, crê que seu pai levaria um choque se visse Tel Aviv hoje. “Ele entenderia a necessidade de a cidade se desenvolver, mas ficaria feliz que pelo menos alguns edifícios foram preservados”.

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