Faz 35 anos que trabalho em teatro, e há 35 anos escuto que "o teatro está em crise”.
É um clássico, assim como é um clássico criarmos maneiras de sair da crise, surfar na onda dela e seguirmos trabalhando por amor, dinheiro, arte, teimosia e o que mais possamos chamar de gancho para não sair, e não sairemos, nunca.
Do ano 2000 para cá, começa a surgir aqui e ali um gênero que o país não via com tanta frequência desde os anos 1960: o teatro musical. No começo, eu e os então poucos adoradores desta categoria especial dentro do teatro não imaginávamos que nosso “cavalo manco” fosse ganhar a força que ganhou e crescer de maneira tão exponencial a ponto de se tornar o centro das atenções das artes cênicas. Mas aconteceu.
A quantidade de público que o musical (os de sucesso e até os de sucesso médio) arrebanha para os espetáculos é da ordem de milhões ao ano. Se tomarmos apenas o momento em que escrevo estas palavras, há em cartaz no Rio de Janeiro e em São Paulo pelo menos seis musicais. Cada um deles empregando no mínimo dez e no máximo 50 artistas no palco, uma média de 15 músicos na orquestra, e entre dez e 40 técnicos nos bastidores.
A operação geral de cada espetáculo desse pode empregar até 200 profissionais, somando-se aos mencionados produtores, programadores, assessores de imprensa, bilheteiros etc.
Um detalhe importante é que ninguém aqui trabalha apenas pelo amor à arte; somos todos assalariados, recebemos cachê, sustentamos nossas famílias com o que recebemos em nosso trabalho.
Parece estranho ter de citar isso como um detalhe, mas vale saber que essa é uma característica do teatro musical em si: seu perfil profissional vai para além da expertise de artistas e técnicos, é um gênero que se estruturou nestes 20 anos baseado em relações de trabalho que, anteriormente, não eram comuns no chamado teatro de prosa no Brasil.
Somado a tudo isso, nesse ínterim, dezenas de novas casas de espetáculo foram abertas para comportar as demandas técnicas e o acesso de grandes multidões ao teatro musical.
Criou-se, junto e em torno do nosso ofício, um “negócio” que vai muito além da relação entre público e espetáculo. Estacionamentos, bares, lojas, até vendedores de pipoca, um conglomerado de empreendedores se agregou aos musicais.
Diferentemente do teatro de texto, os musicais costumam fazer de cinco a oito sessões por semana, o que torna a operação geral um empreendimento realmente sólido e atraente para os que estão dentro e também dos os que gravitam em volta do nosso “show”.
Nossa operação é viável sem o incentivo da Lei Rouanet ou de outra similar? Talvez até seja, mas o padrão apresentado acima é impossível.
Por mais sucesso que façamos, por mais que o público lote nossas oito sessões semanais, o valor dos ingressos não pagaria meio mês de vencimentos de todos os envolvidos.
Por que? Porque os ingressos são muito baratos? Absolutamente não, os ingressos são caros para o bolso do brasileiro (daí os necessários e fundamentais descontos legais, além das contrapartidas muito bem exigidas pela Lei Rouanet), e a receita gerada por eles, para o padrão dos espetáculos, não fazem nem cócegas na folha de pagamentos de todos os envolvidos.
Há desacertos no uso da lei de incentivo? Por Deus, como há. Houve disparates óbvios e alguns nem tão óbvios assim? Como houve!
Mas é para isso que o Ministério da Cultura —hoje transformado em subpasta do Ministério da Cidadania— tem se aparelhado cada vez mais para fiscalizar, cobrar, regular, afinar o controle de uma atividade que a cada dia cresce mais e, portanto, apresenta sempre novos desafios.
Não creio que as notícias recentes de que um teto de R$ 1 milhão seja o que se pensa para o teatro musical. Não faz muito sentido esta determinação partindo de um ministério como o de Osmar Terra, que tem com secretário da Cultura Henrique Pires, um notável defensor das artes e do entretenimento em sua história, e menos ainda que venha justo do governo Bolsonaro, de viés liberal e decididamente favorável aos mercados e suas regras.
Há que mexer em tetos e limites? Que assim seja. Há que regular os aportes? Que assim se faça.
Mas o alardeado limite de R$ 1 milhão não é um ajuste: é o encerramento de uma atividade que movimenta uma multidão de profissionais da área de entretenimento e, mais importante de tudo, que chega em seu destino final, o público, com uma pujança que nenhum outro setor artístico brasileiro chegou sequer perto nos últimos 20 anos.
Tenho certeza que vamos entender isso juntos, presidente, ministro, secretário. O que fazemos só tem a acrescentar ao que vosso governo inicia no país: modernidade, profissionalismo, empreendedorismo.
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