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Além de sexo e crueldade, 'Game of Thrones' perdeu propensão ao risco

Só com o esboço da trama sussurrado por George R. R. Martin, personagens se esfacelaram aos poucos

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Drogon cospe fogo no último episódio de 'Game of Thrones'

Drogon cospe fogo no último episódio de 'Game of Thrones' Divulgação

Depois de oito temporadas, já se sabia que o forte dos criadores da série “Game of Thrones” não é diálogo ou construção de personagens, mas o espetáculo, os dragões, as grandes batalhas.

Uma frustração na reta final foi que não houve preparação maior, emocional, para que Daenerys realizasse a virada e justificasse seu fim e o da série, pelas mãos de Jon Snow.

A preparação se revelou mais na atuação. Um dos momentos memoráveis de Emilia Clarke foi aquele em que, sobre o dragão, vislumbrando Porto Real, seu semblante se deixa tomar pelo ódio.

Mas não se percebeu propriamente uma construção para tamanha reviravolta. Da mesma maneira, até mais decepcionante, não se pode dizer que a cena posterior do conselho que aponta o novo rei, no último capítulo, sustenta aquela escolha.

​A defesa metalinguística de Bran por Tyrion, argumentando que ele teria a melhor das histórias, não fica em pé. Sua trajetória está aquém da tragicidade que envolveu boa parte dos presentes, a começar pelo próprio Tyrion, por Sansa ou pelo Verme Cinzento.

E apelar a um elogio interno, às próprias histórias de George R. R. Martin, acaba por delatar o fracasso no roteiro.

Os “showrunners” foram informados pelo escritor de como ele encerraria a saga, com a morte de Daenerys por Jon Snow e com a ascensão de Bran, mas não como chegar até elas. Isso é algo que Martin promete para os livros que talvez nunca termine.

Só com o esboço da trama, os personagens aos poucos se esfacelaram. No episódio final, a discussão sobre democracia, ainda que tenha terminado em risadas, foi um sintoma. O anacronismo tornou a cena constrangedoramente risível, mas para o espectador.

O mesmo vale para o envio de Arya ao que seria a América. Como apresentadas, as soluções aproximaram “Game of Thrones” de uma paródia.

Referências menos tópicas, como às cinzas no ar, da cidade queimada, ou ao risco de transformar ideais de justiça em opressão, funcionaram mais. Eventuais associações com a realidade, de Hiroshima, do Vietnã, da Revolução Russa, o que for, foram deixadas para o espectador, não impostas a ele.

De maneira geral, em movimento contrário à audiência crescente, perdeu-se passo a passo a tragédia que era anunciada de início da série, derivada da Guerra das Rosas de Shakespeare, ciclo de oito peças históricas. Perderam-se não só o sexo e a crueldade, mas a propensão ao risco.

Com todos os problemas, a reta final tornou patente a vitória do gênero folhetim, neste momento de passagem, dos estertores da TV linear para as plataformas digitais. As falhas técnicas tão irritantes da HBO Go, o streaming que servirá de base para o serviço prometido pela AT&T, soam como dores de parto.
Mas não se confunda este folhetim com aquele das telenovelas latino-americanas, de produção diária de pastiches, cuja viabilidade em streaming pago é questionada a cada nova tentativa, feita por Netflix e outras.

Aqui se tem novamente o folhetim que deu origem, por exemplo, ao maior romance brasileiro, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, saído do jornalismo impresso que começava no país, no século 19.

Desde “Família Soprano”, nesta proclamada era de ouro da televisão no século 21, descobriu-se que há qualidade na produção seriada e que ela é muito bem paga, por um público de amplitude global.

São os folhetins que sustentam a Netflix e as concorrentes que vêm sendo construídas, inclusive a claudicante HBO Go e a brasileira Globoplay.

Se faltaram diálogo e construção de personagem na linha de chegada de “Game of Thrones”, sobrou espetáculo, não só com dragão, mas com uma oferta ampla de “golpes de teatro”, as piruetas de ação para resolver tramas mal preparadas.

Foi assim com a inexplicável decisão de Drogon de derreter o trono de ferro. E foi assim na própria solução repentina da trama central.

Alvo de outra piada metalinguística constrangedora do personagem Samwell Tarly, que antes havia defendido a democracia, o título “As Crônicas de Gelo e Fogo” evidenciou afinal ser tudo uma nova versão da surrada tragédia de amor, no caso, de Jon e Dany.

Porém, como é próprio dos folhetins, a história na verdade não acabou. A série “prequel”, que se passa milhares de anos antes, começa a ser gravada nos próximos meses.

Para quem não aguenta esperar, semana que vem já tem o documentário com os bastidores da última temporada.

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