Descrição de chapéu Flip

'A mim pouco importa a redenção de Euclides', diz Marilene Felinto na Flip

Escritora fez mesa com tom político e conquistou público com impaciência bem-humorada

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Paraty (RJ)

“Os ancestrais de minha mãe”, diz Marilene Felinto, “são possivelmente sobreviventes da degola de Canudos.” A escritora recifense misturou críticas a Euclides da Cunha e à mídia com história pessoal em uma mesa neste sábado (13), na Flip, que arrancou aplausos e risadas da plateia —também pela impaciência bem-humorada da escritora.

Muitas vezes bufando e cruzando os braços —“parece que eu estou gostando, mas eu não estou”, disse num momento— Felinto apressava o jornalista Fernando de Barros e Silva, diretor de redação da revista piauí, se mostrando mais interessada em ouvir o público do que o mediador.

A jornalista e escritora Marilene Felinto, durante a mesa Cansanção - Eduardo Anizelli/ Folhapress

Premiada com o Jabuti por seu primeiro romance “As Mulheres de Tijucopapo”, de 1982, Felinto atuou no jornalismo por duas décadas, inclusive na Folha, a partir de 1990.

Foi amiga do ex-diretor de Redação do jornal, Otavio Frias Filho, morto em agosto do ano passado, que contou ter conhecido em um curso de pós-graduação na USP, onde estudou letras. Rompeu com ele e o jornal em 2002, após ser questionada por uma coluna sobre Lula e ter a periodicidade de seus artigos reduzida de semanal para quinzenal.

A sua participação na programação principal da Flip marca seu retorno à literatura, depois de anos sem publicar. Além de relançar de forma independente no evento seus livros já publicados, ela imprimiu por conta própria um novo livro, “Contos Reunidos”, e uma série de ensaios sobre jornalismo, “Fama e Infâmia”.

Depois de uma breve apresentação feita pelo mediador, Felinto leu um texto por cerca de dez minutos. Ainda que repleta de aspas de autores como Foucault, Deleuze e Jessé de Souza, a leitura conseguiu passar pela história pessoal da autora, que se diz “obsoleta e fora de moda”.

Uma das explicações para tal obsolescência, diz, é a sua recusa em fazer parte da “senzala da reportagem”. Ela contou que não quis participar de uma entrevista que seria gravada no dia anterior para o Jornal da Globo sobre as “principais escritoras negras da Flip” porque havia visto, antes, na mesma emissora, uma seleção dos cinco autores imperdíveis da Flip na qual ela não figurava.

Felinto disse que tentou fazer com que o acesso à sua mesa não fosse pago. A autora afirmou ainda que relutou em aceitar o convite da Flip –e dedicou sua participação a autores do interior do país, "que estão longe dos holofotes do eixo cultural Sul-Sudeste."

Além da história de sua mãe, que foi dada a outra família e perdeu, assim, as ligações com suas origens, Felinto falou bastante de sua própria trajetória. Vinda de uma família pobre da região de mangues do Recife, passou fome na infância e, com 11 anos, foi com os pais e os irmãos para São Paulo. “Minha primeira língua estrangeira foi o paulistês”, disse ela, que treinava o sotaque com os irmãos em casa, para evitar o preconceito dos outros alunos na escola.

“Minha questão é de classe”, afirmou. Embora, segundo ela, também pudesse ser de cor. "Cor e classe são estigmas que se carregam juntos há séculos." Foi quando passou a falar de Euclides da Cunha, o homenageado desta edição da Flip, autor de “Os Sertões”, com o qual sua obra poderia ter relações. Mas ela não é do sertão, disse, e sim do mangue, "mestiça do litoral, como uma das descrições racistas que Euclides faz."

Foi uma de suas relações com o mangue que gerou um dos momentos mais afetuosos da mesa. Felinto mostrou duas fotos em que está comendo caranguejos. Na segunda, está acompanhada do mediador, ambos jovens. À época, ele teria dito que ficou “chocado e encantado” ao vê-la comendo o crustáceo.

A obra do autor de "Os Sertões" colaborou, para Felinto, com o esforço de comprovação científica da superioridade dos brancos sobre indígenas e negros. “Euclides fez jornalismo comprometido com o Exército”, pelo qual, depois, teria se desculpado. “A mim pouco importa a redenção de Euclides.”

Ela se disse afetada por esse recurso à diminuição do negro. “Levei décadas para superar o complexo de inferioridade. ‘Sou feia’, me dizia olhando no espelho”, afirmou, contando que seu pai a chamava de marmota, “um bicho feio”.

Já ao final da mesa, Barros e Silva pediu licença para ler um dos novos prefácios a “As Mulheres de Tijucopapo”, que contam as histórias da publicação do romance. Em relato cru, Felinto narra um estupro que sofreu por um homem mais velho que, indicado por um amigo em comum, supostamente a ajudaria a publicar seu primeiro livro. Na cena, que faz lembrar um dos casos de abuso de Harvey Weinstein, o homem a chama ao banheiro, tira a toalha e agarra a escritora, com um misto de “grosseria e asquerosa delicadeza”.

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