Há apenas uma mesa no centro do palco em “A Noite dos Mortos Vivos”. Ao redor dela, dois homens e duas mulheres discorrem sobre suas relações com drogas, lícitas e ilícitas.
Mas não são personagens de uma situação fictícia. São os próprios atores e atrizes falando sobre suas vidas. Ouvimos recordações pessoais, histórias que testemunharam, frustrações que ainda carregam.
Apesar da estrutura biográfica, eles não pretendem fazer da individualidade a matriz estética do espetáculo. A maioria das falas não são dirigidas ao público, mas parte de um debate simulado entre os quatro participantes. Eles interagem e escancaram as distâncias sociais que os separam.
A diretora e atriz Paula Picarelli, por exemplo, conta sobre a ampliação libertadora de sensações que o uso de cogumelos alucinógenos em Amsterdã proporcionou a ela.
A narrativa gera interesse, mas causa constrangimento, pois ao lado dela está Ronaldo de Morais, que viveu situações infernais com o crack nos anos que passou na prisão.
A mesa na qual estão todos sentados funciona como um labirinto de espelhos que escancara contradições e multiplica as formas de ver e de entender o que é narrado. É uma proposta de encenação que alcança alto rendimento crítico, principalmente porque o contraste entre os atores não assinala apenas as suas diferenças pessoais, mas a dimensão social da vida privada.
Em um aparente paradoxo, a estética que tende ao personalismo faz o país vibrar em suas contradições e cicatrizes. Os fantasmas internos de cada um, sua intimidade mais profunda, aparecem como fantasmas históricos do Brasil.
Como no filme de George Romero que empresta nome à peça e liga o terror à crítica social nos Estados Unidos de 1968, a atmosfera de suspense faz referência à permanência de abusos e desigualdades em nossa sociedade. Como se nossa história fosse um espectro vivendo entre nós.
O elenco abraça a proposição com coragem e comprometimento. Consegue mobilizar suas histórias sem perder a dimensão do trabalho coletivo e o interesse pelo outro. É como se executasse a máxima cunhada por Ronaldo de Morais sobre sua cura: “Nenhuma resolução é individual”.
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