Descrição de chapéu Livros

Obra destrincha traumas e manias por trás do autor de 'Os Sertões'

'A Terra, O Homem, A Luta', de Roberto Ventura, traz contradições de Euclides da Cunha e pistas sobre êxito do livro

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São Paulo

​Quando escrevia “Os Sertões” em São José do Rio Pardo, no interior paulista, o engenheiro e jornalista Euclides da Cunha pintou a zarcão uma frase de “Hamlet”, de Shakespeare, no barracão em que também  supervisionava a reconstrução de uma ponte de metal: “What should a man do but be merry?” (que faria o homem, se não risse?).

Euclides não tinha motivo algum para rir. Nos anos em que escreveu o livro no barracão de zinco, entre 1898 e 1901, ele se debatia com um trauma: a visão da guerra de extermínio contra sertanejos que ele vira o Exército praticar em Canudos em 1897, matéria de sua obra-prima, “Os Sertões”. Egresso da Escola Militar, onde se formara engenheiro, Euclides defendia que o Exército tinha um papel de vanguarda ao acabar com a monarquia.

'400 Jagunços Prisioneiros', fotografia de Flavio de Barros que retrata o final da Guerra de Canudos - Flavio de Barros - 2.out.1897/Instituto Moreira Salles

O trauma resultara da expectativa que tinha da guerra. Republicano radical, Euclides acreditava que o conflito na Bahia contra católicos conservadores restauraria a República recém-proclamada e já acusada de desvios de toda a sorte. 

Enviado ao conflito como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, viu suas ilusões desabarem durante os 17 dias que acompanhou o conflito e presenciou degolas, torturas, mas não a chacina final de uma guerra que deixou cerca de 25 mil mortos e destruiu com fogo e dinamite a segunda cidade mais populosa da Bahia. 

Ao final do ataque da quarta expedição do Exército, que Euclides não viu porque adoecera, restavam quatro pessoas, “um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5.000 soldados”.

Não dá para entender “Os Sertões” sem conhecer os traumas e manias de Euclides, dizia o professor e ensaísta Roberto Ventura, autor de “A Terra, o Homem, a Luta —Um Guia para a Leitura de ‘Os Sertões’, de Euclides da Cunha”, da Três Estrelas, selo editorial do Grupo Folha.

Ventura, morto aos 45 anos num acidente de carro quando retornava da Semana Euclidiana de São José do Rio Pardo, era considerado um dos mais talentosos pesquisadores do autor. Professor da USP, da Unicamp e da Universidade de Bochum, na Alemanha, mesclava erudição, obsessão detalhista na busca de documentos e clareza nos textos.

Ele não concluiu a biografia de Euclides que preparava havia dez anos, mas um esboço do texto, encontrado em seu computador, foi editado por mim e pelo pesquisador José Carlos Barreto de Santana em “Euclides da Cunha —Esboço Biográfico”, que também está sendo reeditado pela Companhia das Letras.

Lançado originalmente em 2002 na Coleção Folha Explica, “A Terra, o Homem, a Luta” é o melhor guia que já li sobre “Os Sertões”. 

Aborda a guinada do pensamento de Euclides sobre o Exército, criticado duramente no livro, os preconceitos e erros de informação do escritor sobre Antônio Conselheiro, as obsessões literárias do autor (Dante, os poetas românticos) e o viés racial, hoje visto como preconceito eurocêntrico, que dominava o pensamento social entre o final do século 19 e o início do 20.

Euclides chamava “Os Sertões” de “livro vingador” porque omitira nos textos que escreveu para o jornal O Estado de S. Paulo os crimes que o Exército praticara contra sertanejos. 

Ele “silenciou sobre as atrocidades da guerra, no que foi acompanhado por quase toda a imprensa”, escreve Ventura. “Sentia-se tolhido para atacar o Exército e se deixou cegar pela máquina de propaganda da imprensa e do governo, para a qual contribuiu com artigos exaltados que se encerravam com brados patrióticos de ‘Viva a República’ ou ‘A República é Imortal’.”

A vertente vingadora de “Os Sertões”, segundo Ventura, era derivada do apreço de Euclides por Émile Zola e a defesa que fez do capitão Dreyfus, acusado de traição ao Exército numa trama em que havia mais antissemitismo do que provas —o militar era judeu.

“Os Sertões” se tornou um sucesso desde a primeira edição, em 1902, apesar de toda a expectativa contrária que havia por ser um livro difícil sobre um tema macabro, a guerra civil, escrito com uma plêiade de termos científicos como socalco (trecho elevado e plano de um terreno) ou lençóis de grés (corpo arenoso cuja espessura é relativamente delgada; daí o nome de lençol).

Ventura dá algumas pistas sobre as razões de o livro ter se tornado um clássico.

Segundo ele, a obra “transita entre a literatura, a história e a ciência ao unir a perspectiva científica, de base naturalista e evolucionista, à construção literária, marcada pelo fatalismo trágico e por uma visão romântica da natureza”.

Há também razões poéticas. “O livro ganhou permanência pela escrita poética, em que o jogo de antíteses e paradoxos indica os próprios conflitos do autor no julgamento da ação das tropas republicanas, supostos representantes do progresso.”

E há razões políticas, frisadas pelo escritor Milton Hatoum num prefácio escrito especialmente para esta reedição, segundo o qual vários trechos de “Os Sertões” parecem tão atuais porque “a irracionalidade política e o fanatismo religioso parecem irmanados” no país.

Ventura ressalta a visão que Euclides tinha do Brasil, que se tornaria uma imagem recorrente nos discursos políticos, a “de um país fraturado por tempos históricos e mundos culturais conflitantes mas, no fundo, muito semelhantes”.

A Terra, o Homem, a Luta: Um Guia de Leitura de ‘Os Sertões’, de Euclides da Cunha
Autor: Roberto Ventura. Ed.: Três Estrelas. R$ 37,90 (104 págs.)

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