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Piglia revê anos hostis com sarcasmo e ironia em livro

Andanças por uma Buenos Aires turbulenta marca o segundo volume das memórias do escritor

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Os Anos Felizes

  • Preço R$ 59,56 (464 págs.)
  • Autoria Ricardo Piglia
  • Editora Todavia
  • Tradução Sergio Molina

Pode parecer contraditório que um argentino caracterize o tomo de suas memórias relacionado ao período entre 1968 e 1975 como “os anos felizes”. 

Isso porque, naquela época, a Argentina viveu tempos violentos. Primeiro, num regime ditatorial, iniciado com Juan Carlos Onganía, em 1966, que chegou ao poder com um golpe militar. Depois, veio o turbulento retorno do general Juan Domingo Perón ao poder, em 1973, que polarizou o país. Após a sua morte, assumiu sua viúva, Isabelita Perón, para um governo impopular, que acabou cedendo ante outro golpe militar, em 1976.

A repressão na época era “muito mais leve”, como conta o próprio Ricardo Piglia (1941-2017), do que a que viria durante o regime de 1976 a 1983 —que deixou mais de 20 mil desaparecidos. Porém, ainda assim, alterava a vida de todos, especialmente a de alguém como ele, um jovem aspirante a escritor, com poucos ingressos, que tinha de mudar de endereço a cada tanto por causa das buscas por “subversivos”. 

Piglia não era um militante, mas era de esquerda, tinha amigos e amantes nos grupos guerrilheiros e simpatizava com a luta antiditadura.

O escritor Ricardo Piglia em 2011, em Caracas 
O escritor Ricardo Piglia em 2011, em Caracas  - Leo Ramirez/AFP

Neste livro, por exemplo, Piglia conta logo nas primeiras páginas como teve de deixar, com a namorada e uns poucos livros, um apartamento no centro de Buenos Aires porque agentes da repressão o procuravam ali. Estão no livro também a escalada da violência que se intensificava com o enfrentamento dos guerrilheiros com as forças de segurança do Estado e dos esquadrões da morte ligadas ao governo, como a Triple A.

As andanças e mudanças de Piglia pela cidade continuariam, neste contexto, fazendo do autor um andarilho entre esconderijos, bares e livrarias. 

Sua trajetória por essa Buenos Aires turbulenta marca este segundo volume de suas memórias, nas quais se apresenta mais uma vez como seu alter ego literário, o personagem Emilio Renzi. A matéria-prima da obra, porém, foram os cadernos de diários que Piglia manteve desde 1957 até o final da vida, e que começou a revisitar com a intenção de publicá-los quando, no meio do processo, recebeu o diagnóstico de ELA (esclerose lateral amiotrófica).

A doença, que o limitava fisicamente, mas não intelectualmente, fez com que sentisse um estímulo renovado para trabalhar. Com a ajuda de assistentes, ditou as correções e alterações dos diários e organizou e escreveu algumas outras obras que saíram postumamente. 

Em junho, foram publicados na Argentina duas delas: “Teoría de la Prosa” (Eterna Cadencia) e “Los Casos del Comisario Croce” (Anagrama).

Mas, afinal, por que “os anos felizes”? A leitura do livro mostra o autor mais seguro de estar se transformando no que queria: um escritor. 

Isso aparece como um processo mais angustiante no volume anterior, “Anos de Formação” (Todavia). Segundo a explicação do próprio autor, este foi o período em que, ao reler suas memórias após tantos anos, pôde se ver em perspectiva e se divertir. “Sempre quis escrever uma comédia e, ao final, foram esses anos de minha vida os que conseguiram o toque de humor que andava buscando”, relata. 

Mesmo num ambiente político hostil, Piglia diz que a atmosfera proporcionou um lugar privilegiado para relatar as mudanças históricas na Argentina, que incluíram a morte de Perón, em 1974, e a escalada da repressão que culminaria nas desaparições forçadas da mais recente ditadura.

Piglia não se mostra alheio a isso, ao contrário, sente os efeitos na própria pele ou na de amigos e colegas, mas estabelece uma rotina de escrita em meio a esse caos.

São recorrentes no diário, por exemplo, suas tentativas ora de se afastar de tudo, trancar-se em casa por vários dias e evitar distrações para pode trabalhar, ora saindo para ver como estavam seus afetos e seu país.

Assim, percorre os bares e cafés, onde encontrava vários intelectuais da época com quem gostava de falar, como David Viñas, ou livrarias, onde o ritual de encomendar uma obra e depois ir buscá-la também rendia encontros. Além da vida amorosa e sexual —intensa no período.

Também narra encontros com lendas vivas de então, como o uruguaio Juan Carlos Onetti. “Muito mais alto do que eu pensava, muito bem-vestido, com um paletó preto de flanela que fazia ressaltar suas mãos longas, brancas e frágeis”, escreve Piglia, dando forma ao autor de “O Estaleiro”. Também surgem em seus registros Manuel Puig e Rodolfo Walsh, entre muitos, transformando o livro, entre outras coisas, num mapa literário de Buenos Aires.

Vemos também um Piglia refletindo sobre seu próprio lugar na literatura argentina, devorando as obras de seus contemporâneos e dialogando com eles. Fica clara a tentativa de se distinguir de um lugar comum geracional, e também vai tomando forma o gênero em que boa parte de sua produção se encaixaria, o da ficção-ensaio.

O curioso é que, quando começou a remexer seus cadernos de anotações, Piglia dizia que alguns deles eram difíceis de abrir, pois havia coisas ali que não queria reencontrar. Reconfortante saber que ele tenha concluído, com sarcasmo e ironia, que “a vida contada por quem a viveu não passa de uma piada”.

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