Descrição de chapéu
Flip

Pode uma escritora sem livros se autodenominar escritora?

Nós, não escritores, servimos bem para servir sempre

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​Na ficha de check-in, fora o profícuo campo “religião”, preencho as lacunas com informações verdadeiras. Não minto idade, não invento CEP, nem forjo estado civil. Assim, o quadradinho que pergunta minha profissão recebe sempre a mesma resposta: jornalista e escritora.

Minha produção criativa atual se concentra neste jornal e em algumas revistas. Nos últimos 20 anos, escrevi em praticamente metade da imprensa. Mas, não, eu não tenho um livro publicado. Nunca lancei romance, coletânea de contos, crônicas policiais, poesia, tampouco promovi noite de autógrafos ou debates sobre minha obra.

A respeito do “jornalista”, estou decerto segura. Mas será que posso me autodenominar escritora realmente? É garantido mesmo aos escritores desprovidos de livros o uso da nomenclatura oficial da ocupação?

Arrumo as coisas para ir à Flip. A tarefa de não esquecer pertences essenciais já seria suficiente para me atacar a gastrite. Sofro de ansiedade crônica, e fazer malas basta para estourarem duas aftas na língua. Mas há agora dúvidas agravantes. O que veste uma escritora sem livros em um encontro de escritores? A crise de nervos se agrava. Posso levar calça de linho com blusa de puro algodão, ou trajes despojados são privilégio de quem já está no terceiro best-seller? Olho o chapéu panamá— abusos não serão tolerados.

Não sei como me comportar. Quão visível é meu recalque? Recentemente, consultei um conhecido se o conhecido dele naquela outra editora poderia se interessar em assinar um contrato comigo. Não, obrigado. De nada. Nós, não escritores, servimos bem para servir sempre.

Somos gratos por ao menos participar deste evento, em que se cruza pelas ruas com escritores verdadeiros, desses que têm livro mesmo, inclusive em outras línguas. Eles estão ali almoçando moqueca, usando o wi-fi dos outros, fazendo selfie tipo as pessoas comuns. Só que, por dentro, estão criando uma história a ser lançada em breve por alguma editora.

Ser escritor publicado deve ser isso: parecer comum, mas, em silêncio, tramar coisas fantásticas, com o poder de impressionar o mundo. Um dia minha hora chega.

Movimentação em Paraty na Flip de 2018 - Marcus Leoni - 28.jul.2018/Folhapress
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