Três primeiros discos de João Gilberto estão fora de circulação

Tidos como 'essência da bossa nova', álbuns são alvo de disputa na Justiça

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O cantor e compositor brasileiro João Gilberto durante show em 2007
O cantor e compositor brasileiro João Gilberto durante show em 2007 - Juvenal Pereira/Folhapress
São Paulo

Mesmo em tempos de fácil acesso à música, não será simples relembrar João Gilberto ouvindo seus venerados três primeiros discos.

Os álbuns são “Chega de Saudade” (1959), “O Amor, o Sorriso e a Flor” (1960) e “João Gilberto” (1961). O mesmo vale para o compacto “João Gilberto Cantando as Músicas do Filme 'Orfeu do Carnaval'” (1959).

Eles formam a “essência da bossa nova”, como definiu o jornalista Claudio Leal. No entanto, não é possível comprá-los em lojas de CDs nem ouvi-los em streaming.

Para apreciar em suas versões originais clássicos como “Samba de uma Nota Só”, “Corcovado”, “O Barquinho”, “Desafinado”, “Morena Boca de Ouro” e “Doralice”, as opções são os LPs remanescentes e vídeos de fãs no YouTube e em redes sociais.

Entender o porquê requer certa arqueologia. Os trabalhos foram lançados pela gravadora Odeon, subsidiária da EMI extinta nos anos 1990 e cujo catálogo é da Universal desde 2012, quando as empresas se fundiram.

Em 1963, João Gilberto avisou a Odeon que não tinha intenção de renovar o contrato. Mas a gravadora continuou a lançar edições de seus discos —e a pagar ao artista o quanto achava que devia.

Em 1988, uma gota d’água fez transbordar a indignação do músico: sem seu aval, a EMI reuniu aqueles três LPs e o compacto no box “João Gilberto - O Mito”, com 38 canções em um CD e três LPs.

Pior: as músicas foram remixadas, alterando o equilíbrio original entre instrumentos e vocais, vozes ganharam ecos e as canções “O Nosso Amor” e “A Felicidade” foram cortadas e unidas em uma só faixa.
João processou a empresa, suspendeu a comercialização e, no embalo, questionou os royalties pagos desde 1964.

Em um laudo anexado ao processo, o arranjador e arquiteto Paulo Jobim, filho de Tom, atestou as deturpações.

“Houve mudanças de equalização que alteraram a voz e o violão e puxaram [para frente] a bateria e as cordas. E algumas músicas foram condensadas num pot-pourri”, disse à Folha recentemente.
A ação tinha ainda um depoimento de Caetano Veloso, segundo quem a revisão sonora de fato prejudicou o original.

Em 2015, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) deu razão aos pleitos de João, mas ainda faltava definir o tamanho da vitória. Ele cobrou R$ 173 milhões. Àquela altura, a gravadora havia depositado R$ 1,5 milhão em juízo. A disputa continuou.

Em 2018, a Universal pediu nova perícia para determinar a quantia, solicitação aceita pelo Tribunal de Justiça do Rio. Quase um ano depois, o mesmo tribunal confirmou, em segunda instância, a vitória de João Gilberto no processo. Ainda cabe recurso no STJ.

Não será fácil fechar a conta. Foram décadas de comercialização. Será necessário ainda levar em conta o advento da tecnologia digital, nos anos 1980, que mudou atributos sonoros e a relação econômica, razão pela qual a Justiça passou a entender que reedições digitais dependiam de nova autorização do autor.

A Odeon-EMI, agora Universal, ignorou essa obrigação, mas sustentava que pagou os direitos autorais devidos e que a reedição não autorizada vendeu pouco.

João Gilberto, homem e artista de desígnios resolutos, queria ir à forra.

O dinheiro seria importante para reparar as finanças. O cantor fez dívidas nas últimas décadas, como um cachê adiantado para um show, em 2011, do qual desistiu. 

Em 2013, por intermédio da ex-mulher, Claudia Faissol, concedeu ao banco Opportunity uma fatia da futura indenização. Em troca, recebeu suporte jurídico nas ações contra a gravadora e uma quantia em dinheiro —teriam sido R$ 5 milhões adiantados de um total de R$ 10 milhões.

A falta de um acordo que privilegiasse a disponibilidade da arte de João Gilberto é razão de lamento para os admiradores, sejam eles velhos ou novos. Como Paulo Jobim, que, na infância, acompanhou o seu pai, Tom, em gravações do cantor baiano.

“As fitas originais da Odeon existem, é fácil resolver. É triste ver isso assim, parado, escondido. São álbuns excelentes e essenciais”, diz Paulo.

Colaborou Lucas Brêda

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