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Em sequência de 'O Conto da Aia', Offred assombra Gilead

Em 'The Testaments', relato em primeira pessoa da Tia Lydia revela como juíza esclarecida se torna mulher cruel

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Marina Della Valle

The Testaments

  • Preço 432 págs., R$ 52,90 (ebook)
  • Autoria Margaret Atwood
  • Editora Penguin Random House

As engrenagens do tempo e da história podem nos colocar em situações surpreendentes, e disso Margaret Atwood sabe bem. A autora canadense viu “O Conto da Aia”, seu livro mais conhecido, se transformar em fenômeno pop 30 anos depois de seu lançamento com o sucesso estrondoso da série que o transpôs para as telas em meio aos questionamentos trazidos pela vitória de Trump e movimentos como o #MeToo.

Na segunda-feira (9), meses antes de completar 80 anos, Atwood esteve no centro de um evento digno dos lançamentos dos grandes best-sellers, com filas de fãs vestidos a caráter ansiosos pela meia-noite, para finalmente botarem as mãos na continuação de “O Conto da Aia”, batizada de “The Testaments” (os testamentos), com lançamento no Brasil previsto para novembro, pela Rocco.

Nas filas, como hoje costuma acontecer em protestos, mulheres vestiam o uniforme vermelho das aias, personagens destinadas à escravidão reprodutiva na teocracia fundamentalista de Gilead, como Offred, protagonista de “O Conto da Aia”, interpretada por Elisabeth Moss na série da plataforma de streaming Hulu.

Atwood, porém, já dissera que não via uma continuação para a voz de Offred. Sua solução foi girar o holofote e trazer Gilead de volta em outras vozes. “The Testaments”, que se passa 15 anos depois dos acontecimentos de “O Conto da Aia”, leva ao leitor três “testemunhos”: o de duas garotas jovens, Agnes e Daisy, e o de uma velha conhecida dos leitores e fãs da série: Tia Lydia, supervisora cruel das aias, interpretada por Ann Dowd. Único escrito em primeira pessoa, o testemunho de Tia Lydia revela uma mulher cruel, inteligente, ardilosa e, por que não, engraçada.

No lançamento de “The Testaments”, Atwood declarou que quis abordar as maneiras como regimes como Gilead acabam. É nesse ponto que Tia Lydia é central à trama. Termina também por examinar quem possibilita que tais regimes floresçam e sigam em frente. É provável que a maioria dos leitores de “O Conto da Aia” e espectadores da série se identifiquem com Offred e sua ânsia por liberdade. Mas, se estivessem em Gilead, quem de fato seriam? Comandantes, tias, esposas?

Como uma juíza esclarecida, como foi Lydia em sua vida pregressa, se transforma na mulher cruel que faz parte das engrenagens de um sistema que mata e oprime outras mulheres? Esse é um dos motivos que fazem do testemunho (memórias?) de Lydia o mais interessante dos três.

A relação entre a obra de Atwood e o roteiro do seriado –dinâmica que pode ser um tanto problemática, como bem sabem os fãs de “Game of Thrones”– se desenvolveu em uma espécie curiosa de simbiose entre autores. A série extrapola o livro, e a história de Offred vai além da contada por Atwood –a mulher confusa de destino incerto se transforma em membro importante da resistência a Gilead.

“The Testaments” incorpora esse desenvolvimento, incluindo a segunda filha de Offred, Nicole, levada ainda bebê para o Canadá na série, transformada em símbolo tanto pela resistência quanto por Gilead no novo livro. Em contrapartida, de acordo com uma entrevista de Atwood, a autora convenceu a produção a não matar Tia Lydia, já então centro da continuação de “O Conto da Aia” que ainda escrevia.

Se Offred pouco aparece de fato em “The Testaments”, sua sombra é um pano de fundo para toda a trama, algo maior que assombra Gilead e fortalece o movimento Mayday, que opera rotas de fuga e vazamentos prejudiciais ao regime teocrático. Sabemos um pouco mais sobre seu destino, mas são os elementos já presentes no livro anterior e na série que amarram a nova trama, embora não caiba revelar aqui o que os leitores logo descobrirão com “The Testaments” em mãos.

Assim como em “O Conto da Aia”, os homens de Gilead são personagens opacos em “The Testaments”. Sabemos mais sobre o funcionamento do regime, mas não muito sobre o que fazem os poderosos comandantes, topo da estrutura social da teocracia.

Além de Lydia, temos os depoimentos de jovens que não presenciaram a criação de Gilead: Agnes cresceu dentro do regime, com fé em seus desígnios, até ir descobrindo aos poucos as podridões escondidas sob o tapete. Daisy segue para Gilead depois de crescer no Canadá.

Os leitores (e espectadores) sabem que as cores das vestes são muito importantes em Gilead: deixam à vista a posição de cada um naquela sociedade. Quando a capa de “The Testaments” foi revelada, trazendo uma aia com roupa verde, em vez do vermelho característico, surgiram várias teorias a respeito. Ao fim da leitura, a capa parece se referir à ideia mais associada ao verde: a esperança. Mas quanta? Como sempre, com Atwood nada é simples. Ainda bem.

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