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Marighella é relembrado em filme, livros e HQ após 50 anos de sua morte

Militante é rosto de polarização política que o transforma em símbolo de resistência e de terrorismo

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São Paulo

No seu álbum homônimo de 1969, Caetano Veloso canta com Gilberto Gil “Alfômega”, na qual o compositor de “Back in Bahia” declama ao fundo sílabas que soam como um “ie-ma-ma-ma-ri-ghe-lla”. Mais tarde, o baiano disse que aqueles sons eram desconexos e não tinham relação com a política. Mas a militância não tinha como deixar de ouvir o nome do líder da ALN, a Ação Libertadora Nacional, morto a tiros pela polícia em novembro daquele mesmo ano.

Naquela época, quem não negou relação com Marighella foi o francês Jean-Paul Sartre, que publicou textos do brasileiro na revista “Les Temps Modernes”. Ao mesmo tempo, o cineasta Jean-Luc Godard chegou a destinar verbas do filme “O Vento do Leste” (1970) para a ALN. Mais ou menos o que fez também Joan Miró, que doou esboços para a organização.

Cartaz feito por Phill Zr. e entregue como uma das recompensas do financiamento coletivo da HQ ‘Marighella #Livre’ 
Cartaz feito por Phill Zr. e entregue como uma das recompensas do financiamento coletivo da HQ ‘Marighella #Livre’  - Divulgação

De certa forma, a figura de Marighella sempre orbitou o mundo das artes e esteve relacionada com diferentes personalidades —em vida, ele ainda se aproximou de Glauber Rocha, Augusto Boal e 
Lina Bo Bardi, por exemplo. 

Agora, 50 anos após a sua morte, que teve palco em São Paulo no dia 4 de novembro de 1969, o guerrilheiro volta a sacudir a produção artística.

“Com uma diferença: em 2019, ele é mais amado e odiado do que quando estava na guerrilha”, diz o jornalista Mário Magalhães, autor da biografia do personagem.

A polarização política vivida no Brasil nos últimos anos fez com que um dos principais nomes da luta armada nacional ganhasse interpretações opostas dependendo do extremo ideológico. Se parte da esquerda passou a usá-lo como bandeira de resistência, outro setor da direita começou a vê-lo como símbolo de um terrorismo nacional que deve ser eliminado da política e da sociedade dos dias de hoje. 

Principalmente por causa de ações que envolveram a ALN, incluindo assaltos a bancos e carros-fortes e até o sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, em 1969, que seria trocado por presos políticos.

“Ele não é Deus nem Diabo. Acontece que, quando o presente discute o passado, nunca se analisa o ontem, mas olha-se o hoje”, diz Magalhães.

Um dos principais exemplos do cabo de guerra ideológico nas novas representações de Marighella é o filme que leva o nome do líder da ALN. Dirigido por Wagner Moura, ele estava previsto para estrear no próximo dia 20 de novembro, mas a produção teve o lançamento cancelado no circuito comercial brasileiro. 

A justificativa foi um contratempo com os prazos e os trâmites exigidos pela Ancine, a agência do cinema nacional que foi ameaçada por Jair Bolsonaro de ganhar filtros em sua gestão. O adiamento do longa foi celebrado por Carlos Bolsonaro nas redes sociais.

Inspirado na biografia escrita por Magalhães, o filme acompanha Marighella nos últimos cinco anos de sua vida, do golpe militar de 1964 até a sua morte. Ainda sem data de estreia no país, ele circulou só por festivas de cinema, de Seattle a Hong Kong, de Rosario ao Cairo. 

“O Brasil não tem o direito de não refletir sobre suas figuras históricas mais importantes”, diz o professor Vladimir Safatle, que coordena uma nova coleção da editora Ubu. Chamada de “Explosante”, ela vai publicar uma coletânea de textos de Marighella em novembro. “É preciso produzir debates e diferentes leituras, não optar pelo silêncio.”

O livro ainda não tem título definido e traz poemas do militante, uma carta à executiva do Partido Comunista Brasileiro, escritos que só circularam clandestinamente e os mais conhecidos “Quem Samba Fica, Quem Não Samba Vai Embora” e “Por que Resisti à Prisão”, com apresentação de Antonio Candido e prefácio de Jorge Amado. O “Minimanual do Guerrilheiro Urbano”, que ganhou ares de livro cult, não faz parte do compilado.

Safatle diz que os textos permitem dizer que as decisões tomadas por Marighella contra o regime militar são frutos de uma reflexão que durou décadas. “Ficou a imagem do guerrilheiro, mas ele era um analista político presente.”

Além do livro, a coleção da Ubu lança em outubro “Petrogrado, Xangai”, de Alain Badiou. Para o ano que vem, a editora planeja ainda um título de Frantz Fanon e outro de Larissa Drigo sobre a Comuna de Paris. “São obras que tentam recuperar o sentido de revolução, seja ela política, estética ou filosófica”, conta Safatle.

Carlos Marighella na redação do Jornal do Brasil, mostrando os ferimentos recebidos em sua prisão
Carlos Marighella na redação do Jornal do Brasil, mostrando os ferimentos recebidos em sua prisão - CPDOC JB

Não foi apenas a imagem de guerrilheiro que ficou. A luta contra a ditadura militar acabou se tornando a fase mais conhecida de sua biografia. Mas a história de Marighella vem de antes. Nascido em 1911, ele foi preso quando era estudante, fez oposição ao governo de Getúlio Vargas e ao Estado Novo e foi eleito deputado para a Assembleia Nacional Constituinte nos anos 1940.

É esse passado menos lembrado que surge na história em quadrinhos “Marighella #Livre”. Também inspirada na biografia de Mário Magalhães, a HQ tem roteiro de Rogério Faria, desenhos de Ricardo Sousa e recria a prisão do personagem em 1936.

Feita de maneira independente, a história depende de um financiamento coletivo para ser publicada. “Em uma semana no ar, recebemos mais de 500 mensagens pedindo que ela fosse cancelada. É difícil falar de Marighella hoje, porque você enfrenta um movimento de intimidação”, diz Faria, que começou a escrever o roteiro da HQ em 2017.

O financiamento coletivo busca reunir R$ 2.000 para imprimir cem edições. Até esta sexta-feira (27), a campanha havia adquirido cerca de R$ 1.500. “Se ultrapassarmos o valor, vamos aumentar a tiragem e expandir o número de páginas”, adianta o roteirista sobre a revista, prevista para fevereiro de 2020.

As prisões de Marighella durante o governo de Getúlio Vargas vão gerar ainda um outro livro, que será publicado em novembro pela editora Xapuri. Organizado pelo ex-deputado federal Gilney Viana (PT), a obra reunirá depoimentos do guerrilheiro sobre suas detenções nos anos 1930 e reportagens da época.

O livro tem previsão de lançamento para o início de novembro, quando deve ocorrer uma audiência pública na Câmara dos Deputados em memória dos 50 anos da morte de Marighella. Nela, será feita ainda uma exposição com fotografias dos tempos de sua prisão, do trabalho como parlamentar e da vida na guerrilha. 

O pedido para que o evento ocorra em Brasília foi apresentado pela deputada Luiza Erundina (PSOL-SP). “A oposição ainda não se deu conta, acho que estão com outros problemas”, fala Viana. 

Guerrilheiro em obras

‘Marighella’
Dirigido por Wagner Moura, o filme tem Seu Jorge como protagonista e recria os últimos cinco anos de vida do guerrilheiro. 

Coleção ‘Explosante’
Ainda sem título, o livro da coleção da editora Ubu compila textos de Marighella, alguns mais conhecidos e outros que só circularam na clandestinidade.

‘Marighella #Livre’
Inspirada na biografia de Mário Magalhães, a HQ está com financiamento coletivo aberto no Catarse e retrata a prisão do líder da ALN no governo de Getúlio Vargas.

Depoimentos da prisão    
Também sem título definido, o livro da editora Xapuri reúne depoimentos de suas prisões nos anos 1930.

Erramos: o texto foi alterado

O nome correto da ALN, grupo liderado por Carlos Marighella, é Ação Libertadora Nacional. O texto foi corrigido.

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