Descrição de chapéu The New York Times Livros

Biografia de Elton John traz retrato mais profundo e honesto do que o do filme

Escrito com o crítico musical Alexis Petridis, 'Me' mergulha em histórias sobre vícios, sexo, ciúmes e até implantes de cabelo

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Janet Maslin
The New York Times

Quando Elton John fez sucesso suficiente para comprar um avião, ele escolheu um exemplar notório: um ônibus de excursão alado e pintado de roxo e dourado, supostamente o veículo preferido pelo Led Zeppelin para festas selvagens.

Como um homem que certa vez tocou para 500 mil pessoas usando uma fantasia de Pato Donald, John mandou alterar a pintura do avião para enquadrá-la à sua ideia pessoal de bom gosto e em seguida bateu todos os recordes de depravação estabelecidos pelo Led Zeppelin.

Em "Me", um livro de memórias em que ele não esconde nem os implantes de cabelo e que estabelece novos patamares de franqueza para os astros do rock envelhecidos, ele descreve os gritos de sua mãe ("Oh! Não posso olhar para a tela") ao assistir ao filme pornô "Garganta Profunda", de 1972, a bordo do avião, enquanto os membros da banda de John presumivelmente faziam o possível para sair de perto. Que filho estimula esse tipo de comportamento em uma mãe constantemente abusiva?

Retratto de ELton John em junho de 2012 - Serguei Supinsky/AFP

Se John não tivesse mais a contar que o estrago que seus pais rancorosos lhe causaram, a história que ele tem a narrar já seria fascinante. Mas "Me" é um livro com sobra de assuntos, escrito por um homem que até agora tinha optado por guardar muita coisa para si

Alguns meses atrás, o filme "Rocketman" ofereceu um relato razoavelmente preciso sobre a história de Elton John —mas mal tocou a superfície do material que ocupa as memórias do músico. As partes escandalosas conquistarão manchetes. Mas é o autoconhecimento que o autor adquiriu com muito esforço ao longo da vida que serve de verdadeiro tema central para o livro.

John ocupa um lugar incomum no cosmos dos astros do rock. Ele cresceu num daqueles subúrbios deprimentes dos quais a maioria dos rebeldes da década de 1960 mal podia esperar para escapar. Mas John gostava daquela vida e viveu com a família mesmo no começo de sua vida adulta. Ele era membro do Reader's Digest Book Club.

Quando um ato do destino o colocou em companhia de Bernie Taupin, seu parceiro de composição e letrista, os dois decidiram morar na casa da família de John, dormindo num beliche. Nem mesmo os mais alucinados excessos de sua vida posterior alterariam a natureza essencialmente burguesa de John.

Assim, não surpreende muito que ele tenha sido alvo de tiradas por algumas das figuras mais sarcásticas do mundo da música, entre as quais Keith Richards e David Bowie. Diferentemente de qualquer deles, porém, John é conhecido por plantar bananeira enquanto toca piano.

Assim que John e Taupin conseguiram seus primeiros sucessos, uma turnê pelos Estados Unidos se tornou obrigatória. Ele conta histórias maravilhosas sobre tocar no Troubadour em Los Angeles, onde deslumbrou as audiências que jamais haviam visto algo parecido, sobre ir ao Laurel Canyon e conhecer todas aquelas pessoas cujos álbuns faziam parte de sua coleção.

Ele também narra o episódio em que aceitou um convite de Brian Wilson para visitá-lo em casa e de sentir enervado quando Wilson cantou repetidamente o refrão de "Your Song" ("I hope you don't mind, I hope you don't mind"). Ele era algo de novo, pop puro, e muito divertido. Todo mundo queria conhecê-lo, o que inclui muitas groupies, que ele aprendeu a evitar cautelosamente.

Foram seus amigos gays que o convenceram de que ele era gay, quer soubesse disso, quer não. John não foi capaz de fazer grande coisa quanto a isso até os 23 anos, mas não demorou a compensar o tempo perdido.

Ele escreve francamente sobre sua natureza ciumenta, sua tendência a sofrer decepções amorosas por se apaixonar por homens heterossexuais e sua incapacidade de avançar devagar, com quem quer que fosse.

Ele era ao mesmo tempo possessivo e distante, um traço que compartilhava com o amigo Rod Stewart. Os dois mantém uma rivalidade amistosa e até hoje se chamam de Phyllis e Sharon. Freddie Mercury, outro amigo próximo, era Melina, por conta da atriz Melina Mercouri.

A Aids, que causou a morte de Mercury, é uma causa importante para John há muito tempo. Ele criou a Elton John Aids Foundation no final da década de 1990 e suas memórias —cuidadosamente apolíticas exceto quanto a questões LGBTQ— mais de uma vez se referem ao seu ativismo para explicar certas controvérsias.

Quando ele tocou no casamento [do radialista direitista] Rush Limbaugh, em 2010, afirma John, seu cachê foi doado para a fundação, e quando ele se apresenta na Rússia, aproveita a oportunidade para promover os direitos dos gays.

John se descreve como voyeur, sexualmente, e especula que seu desejo de olhar, de preferência a tocar, pode tê-lo ajudado a escapar da doença. Fãs das autobiografias de astros do rock, tomem nota: o livro fala sobre a batalha de John contra o câncer de próstata, com detalhes sobre sua cirurgia e o uso de fraldas adultas. Essa talvez seja a primeira revelação desse tipo num livro como esse.

 

Ele fala com ainda mais franqueza sobre seus vícios. A maior parte de suas composições mais famosas já tinha surgido quando a cocaína se tornou parte de sua vida. Mas John não é o tipo de cara que faça as coisas em pequenas doses. O estilo dele é mais do tipo "do nada ao nuclear". E ele tinha dinheiro e acesso para desfrutar de imensas quantidades de drogas, a ponto de certa vez ter passado duas semanas trancado no seu quarto, bebendo e cheirando cocaína.

Ele também sofria de bulimia e ficava furioso quando alguém dava a entender que poderia buscar ajuda para qualquer desses problemas. Como exemplo de um de seus piores momentos, ele descreve estar em um quarto de hotel com a mobília toda demolida e de perguntar quem era o responsável pelo estrago. A resposta: ele.

Mas o livro não é uma história triste. Até mesmo seus piores momentos podem ser sombriamente engraçados. Em outra manhã ruim, John acorda e lê a notícia de que havia passado a noite anterior jogando laranjas em Bob Dylan, irritado com a incompetência de Dylan no jogo de mímica —"ele não conseguia entender como funciona a história de 'quantas sílabas', de jeito algum".

O que terminou por tirar John do vício foi o efeito combinado da perda de muitos amigos e de acompanhar de perto o que aconteceu com alguém de quem ele gostava e passou por uma reabilitação. Ele encarou o processo todo com desdém, até o momento em que mudou de ideia. E a reabilitação funcionou. Entre outras revelações sobre sua vida de sobriedade, John conta que é o padrinho de Eminem nos Alcoólicos Anônimos e revela o palavrão que Eminem usa como saudação.

Um livro que varia dos abusos grotescos que John sofreu de seus pais à rainha Elizabeth esbofeteando o visconde Linley, passando pelo apego de John a Gianni Versace, um sujeito ainda mais consumista do que ele, o que representa uma verdadeira façanha —a quadra de críquete da casa de John passou algum tempo lotada de caixotes de entregas que ele não tinha tido tempo de abrir. Certamente vai ter algo que agrade a todos.

"Me" foi escrito com a ajuda do crítico musical britânico Alexis Petridis, que se encontrava com John frequentemente, ouviu suas histórias e criou uma maneira de reproduzir a fala dele como texto. As transições suaves e o uso de prenúncios mostram o trabalho de um profissional da escrita.

Mas com base nas amostras de texto de John que o livro oferece —em certo momento de sua reabilitação, ele escreveu uma carta à cocaína que começa por "não quero que eu e você dividamos o mesmo túmulo"—, a voz que o livro oferece soa verdadeira, mesmo que até agora não fosse conhecida.

É um presente enfim podermos ouvir o que tem a dizer aquela pessoa que nos deu tantas palavras de Bernie Taupin e tão poucas das suas.

Tradução de Paulo Migliacci

Me

  • Preço US$ 30 (R$ 124), 374 págs.
  • Autoria Elton John
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