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Cinema

'Coringa' mostra crueldade do homem de gostar de rir dos outros

Filme de mostra passagem de psicótico a psicopata de um jovem numa cidade decadente nos anos 1980

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O Coringa

  • Classificação 16 anos
  • Elenco Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz
  • Produção EUA, 2019
  • Direção Todd Phillips

O horror não está no horror —repetia Júlio Bressane nos anos 1970, no Brasil. O horror não está no horror— parece insistir Todd Phillips em seu “Coringa”. Ali ele nos fala da origem do mais célebre e temível inimigo de Batman, como se sabe.

Mais do que isso, porém, é da passagem de psicótico a psicopata de um jovem que vive na Gotham City (ou Nova York) de 1981, ano de “Um Tiro na Noite”, mas também da tomada do poder por Ronald Reagan.

É uma cidade suja, infestada por ratos, tomada por despossuídos, habitantes de rua e prédios sujos. Lembra até certos filmes de John Carpenter. Mas lembra, mais do que tudo, que Reagan foi o instaurador da política neoliberal nos Estados Unidos. Quisesse ou não, foi essa a política econômica que tem propiciado o crescimento abissal das desigualdades sociais no mundo.

Não por acaso, pouco depois de o filme começar sabemos que o serviço social onde o jovem Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), o futuro Coringa, trata de seus problemas mentais teve a verba cortada. Vai-se assim a terapia e, junto, os remédios que recebia gratuitamente.

Resta-lhe cuidar da mãe, exercer sua profissão de palhaço (do tipo que atrai pessoas para lojas, visita hospitais etc.), ver televisão e sonhar em se tornar astro de comédia stand-up e apresentador de talk shows.

É então que entra em cena outro elemento-chave do filme: a televisão (o primeiro, claro, sãos as HQs). Ali trabalha Thomas Wayne, um dos mestres do talk show. Aquele que veio de baixo e teve oportunidade de subir, de chegar ao sucesso. Aquele que, de passagem, não hesita em humilhar os “freaks”, os desajustados como Arthur Fleck. Ok, as piadas de Arthur não fazem rir, mas fazem com que riam dele.

Dá audiência, faz a fortuna dos Thomas Wayne (pai do futuro Batman, para os distraídos) ou Murray Franklin (outro rei dos talk shows).

Ok, eles não são os únicos culpados. Nem Ronald Reagan. Nem só a doença que faz o futuro Coringa rir nos momentos mais inconvenientes. Há também uma crueldade inerente ao homem: gostamos de rir dos outros. Então ou fazemos os outros rirem, ou os outros rirem de nós.

Será que na visão de Todd Phillips não somos uma espécie perversa? Ou que a televisão seja uma parte central dessa perversidade? (A TV está no centro de tudo neste filme). Ou que a tendência à ganância a qualquer preço esteja dentro de uma tendência natural ou, pelo menos, de uma decadência civilizatória?

Pode-se ver as coisas assim. Elas não estariam tão longe do olhar de um Tim Burton (autor de vários filmes de Batman já feitos). O certo é que os fãs de Batman nunca mais poderão olhar o Coringa com os mesmos olhos. Junto com a imagem do incompreensível, insuportável vilão de outros filmes, veremos também a de um jovem triste, torturado, sem pai conhecido. Em suma, revoltado. E é impossível não compreender sua revolta.

Uma palavra sobre Todd Phillips, que fez carreira sobretudo em comédias sarcásticas, em especial a muito bem-sucedida “Se Beber Não Case” (a primeira), onde manejava elementos de absurdo e crueldade com desenvoltura. Mas é aqui que, aparentemente, obteve a independência para fazer um trabalho pessoal.

Por fim, “Coringa” não seria o mesmo sem Joaquin Phoenix. Seu Arthur Fleck parece ter se inspirado em Antonin Artaud (1896-1948 ), no Artaud do fim da vida, pós-hospício, o de “Artaud le Momo”, dessa máscara que ri, faz rir, zomba e geme ao mesmo tempo.

Pode ser que não, mas quem quiser fazer um filme sobre Artaud já sabe onde encontrar o ator. É um gênio, também. 

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