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Cinema

Início da era Lula é pano de fundo de 'Domingo', que retrata elite caricata

Camila Morgado é Bete, composição no limite do grotesco, e Ítala Nandi é Laura, representante da elite mais retrógrada que existe no Brasil

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Não é a toa que "Domingo" se passe quase que totalmente no primeiro dia de 2003. É o dia em que Lula toma posse para seu primeiro mandato como presidente do Brasil.

O interessante é que 1° de janeiro de 2003 não caiu no domingo. Nem no sábado, como dizem no filme. Foi numa quarta-feira que esse ano começou, o que talvez dê uma ideia do nível de alienação dos personagens.

O filme de Clara Linhart e Fellipe Barbosa se insinua como uma caricatura da Casa Grande, no caso, a gaúcha, e de seus temores com a chegada de um ex-operário nordestino ao poder.

Sob esse aspecto, Barbosa atualiza seu primeiro longa, intitulado justamente "Casa Grande", com Linhart como assistente de direção, numa parceria providencial para corrigir alguns desarranjos do filme anterior, tendo entre os dois o interessante "Gabriel e a Montanha" (no qual Linhart foi coprodutora).

Claro, difícil saber quem dirige o quê num caso de direção partilhada. Cinema é ponto de vista, o que torna as coisas um tanto mais complicadas. Mas é sensível o avanço em relação aos dois longas anteriores de Barbosa, o que dá a entender que a parceria fez bem e provavelmente os diretores estavam bem entrosados.

Na trama muito simples, demora um pouco para entendermos quem é pai, quem é tio, irmão, filho, amigo ou mãe nessa família maluca, mas tudo isso pouco importa. O que mais interessa é brincar com os arquétipos da burguesia brasileira e notar sua relação, entre o condescendente e o escravocrata, com os empregados.

As personagens mais importantes são Bete, composição no limite do grotesco de Camila Morgado (ótima, mas não vai agradar a todos), e a matriarca Laura, vivida por uma sublime Ítala Nandi como a típica representante da elite mais retrógrada que existe no Brasil.

Outros filmes aparecem, consciente ou inconscientemente, no caldeirão referencial de "Domingo". Há "As Quatro Voltas", de Michelangelo Frammartino, logo no início: José (Clemente Viscaíno) organizando o rebanho e o cachorro ajudando à sua maneira.

Depois surgem "O Pântano", de Lucrécia Martel, na cena à beira do rio, e um "Teorema", de Pasolini, às avessas, na chegada de Mauro (Chay Suede), um professor de tênis que é seduzido por mãe e enteada.

Há um quê de Carlos Saura dos anos 1970, outro de Alain Tanner, um pouco de John Cassavetes aqui e de Éric Rohmer ali. Referências que, sendo ou não percebidas pelo espectador, em nada atrapalham.

Não é novo esse cinema da alusão, e não é necessariamente ruim. O cinema começou a olhar para sua história no pós-guerra, e esse olhar se intensificou nos anos 1960. O auge da alusão está nas décadas de 1980 e 1990, mas até hoje essa prática persiste, por vezes disfarçada, como piscadelas cada vez mais discretas para amantes de cinema.

Quase tudo é caricatura, embora nossa elite seja, ela própria, até mais caricata na realidade. Há obviamente crítica nessa caricatura, e há, sobretudo, comentário crítico nos momentos em que a coisa fica séria.

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