Descrição de chapéu The New York Times

Morre aos 82 o artista John Giorno, personagem de filmes de Andy Warhol

Americano também era conhecido por seus esforços para levar a poesia à era moderna

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Randy Kennedy
Nova York | The New York Times

John Giorno, que se voltou ao mundo da arte e aos mecanismos da mídia de massa para libertar a poesia da página e integrá-la de modo mais profundo ao tecido da vida cotidiana, morreu na sexta-feira (11) em sua casa em Manhattan, em um edifício que ele transformou em ponto de encontro para praticamente toda a vanguarda de sua era. Ele tinha 82 anos.

Sua morte, causada por um ataque cardíaco, foi confirmada pelo artista Ugo Rondinone, o marido de Giorno.

Com um visual de deus grego e um espírito benévolo e gregário, Giorno desempenhou papel importante em sua juventude como inspiração e amante de outros artistas, entre os quais Robert Rauschenberg e Andy Warhol, cujo influente filme "Sleep" (1963) foi produzido registrando mais de cinco horas de imagens de Giorno adormecido, com uma câmera fixa Bolex; o resultado era como uma versão pop art do Cristo de Andrea Mantegna.

Mas a contribuição duradoura de Giorno para a arte veio de seus experimentos infatigáveis com formas de circulação de poesia, e com o potencial político do trabalho poético, que ele sentia ter sido eclipsado injustamente por outras formas de expressão.

"Ocorreu-me que a poesia está 75 anos atrás da pintura e escultura, dança e musica", ele disse ao curador Hans Ulrich Obrist, em 2002, acrescentando que sua inspiração havia sido em parte a maneira pela qual os trabalhos dos artistas pop saíam do trilhos da arte tradicional e atingiam uma audiência mais ampla.

"Em 1965, os únicos veículos para a poesia eram livros e revistas, nada mais", ele disse. "Multimídia e performance não existiam. Eu disse comigo mesmo que, se os artistas podem, por que não posso fazer o mesmo com a poesia?"

Naquele ano, ele fundou a Giorno Poetry Systems, uma fundação sem fins lucrativos, para promover seu trabalho e o de seus colegas. E quatro anos mais tarde, inspirado por uma conversa telefônica com o amigo William Burroughs, ele criou o Dial-a-Poem, um sistema rudimentar de comunicação em massa para poetas de vanguarda e oratória política.

Inicialmente usando seis linhas telefônicas ligadas a secretárias eletrônicas instaladas em uma sala da Architecture League, na região do Upper East Side de Manhattan, o serviço funcionava 24 horas por dia para qualquer pessoa que tivesse alguns minutos disponíveis e quisesse ouvir leituras de textos.

Milhões de pessoas ligaram, ouvindo versos recitados por poetas como Allen Ginsberg, Anne Waldman, Peter Schjedahl e Ron Padgett, aos quais mais tarde se uniram dezenas de outros poetas e membros de organizações como os Panteras Negras.

Em um momento no qual a cultura em geral e o mundo da arte continuavam a ser relativamente pudicos e também profundamente homófobos, o serviço Dial-a-Poem —que foi destaque na influente exposição "Information", no Museu de Arte Moderna de Nova York em 1970— era em muitos casos abertamente erótico e conferia forte peso ao conteúdo gay.

"Parece estranho que, em 1968, as coisas ainda fossem puritanas, vistas de fora", disse Giorno a Obrist. "Todos usávamos muitas drogas, e nossas vidas pessoais eram liberadas. Mas na mídia e no mundo em geral, imagens pornográficos ou eróticas jamais eram usadas".

O trabalho pessoal dele se baseava fortemente no conceito de imagens encontradas que alimentou a revolução pop; ele também recorreu ao "ready-made" —objetos cotidianos e encontrados apresentados como arte—, articulado pelo artista Marcel Duchamp e filtrado pelos escritos de Burroughs e Brion Gysin. Em seus primeiros trabalhos, Giorno garimpava itens noticiosos e os apresentava virtualmente intocados como versos, como na peça abaixo, publicada em sua primeira coleção, "The American Book of the Dead", de 1964:
 
"Um policial à paisana / foi derrubado a soco / por uma multidão de adolescentes ontem / quando ele e seu parceiro / tentaram separar uma briga / entre duas gangues de garotas / no pátio de uma escola / no bairro de Bedford-Stuyvesant / no Brooklyn".
 
John Giorno nasceu em 4 de dezembro de 1936 e foi criado no Brooklyn e em Roslyn Heights, em Long Island. Seu pai, Amadeo Giorno, cujas origens Giorno encontrou na nobreza normanda da Puglia e de Basilicata, era dono de uma fábrica de roupas, e sua mãe, nascida Nancy Garbarino, era estilista.

Giorno era filho único e disse que descobriu sua sexualidade no começo da adolescência quando começou a fantasiar sobre os padres atraentes, nas ocasiões em que os pais o levavam à igreja.

John Giorno, em primeiro plano, e seu marido, Ugo Rondinone, em Paris, em foto de 2015
John Giorno, em primeiro plano, e seu marido, Ugo Rondinone, em Paris, em foto de 2015 - Alex Cretey-Systermans/The New York Times

Ele se graduou no segundo grau na James Madison School, no Brooklyn, onde a juíza Ruth Bader Ginsburg e o senador Bernie Sanders também estudaram, mais ou menos na mesma época; o artista sempre falou da importância dos professores de inglês que ele teve na escola. Em 1958, se formou na Universidade Columbia, onde conheceu Ginsburg. Durante um breve período de trabalho como corretor de ações, Giorno começou a fazer amizade com artistas e poetas como Warhol, Ted Berrigan e o cineasta Jonas Mekas.

Ele e Warhol estavam morando juntos quando Warhol teve a ideia de filmar Giorno dormindo nu.

"Ele me perguntou, a caminho de casa, se eu queria me tornar astro de cinema", disse Giorno ao jornal The Guardian, em 2002. "Respondi que claro que sim, que queria ser Marilyn Monroe". Ainda que Warhol e Giorno tenham se separado em 1964, o filme —que estava entre as primeiras imagens rodadas por Warhol— os ligou indelevelmente na história da arte do pós-guerra.

Em 1963, Giorno se mudou para um grande casarão no Bowery, construído para servir como primeira sede da Associação Cristã de Moços e que mais tarde passou a abrigar os estúdios de diversos artistas, entre eles Mark Rothko e Fernand Léger.

Ele terminou por ocupar três espaços no edifício, um dos quais se tornou conhecido como "o Bunker", um nome escolhido por Burroughs, que passou a viver lá ocasionalmente, em um antigo vestiário sem janelas, a partir de 1975.

Depois da morte de Burroughs, em 1997, Giorno preservou o quarto dele tal como havia sido deixado, com a máquina de escrever manual do romancista em uma mesinha e uma zarabatana apoiada na parede.

Em 1963, o artista Wynn Chamberlain organizou uma festa para o 27º aniversário de Giorno no edifício, que mais tarde ficou famosa como um retrato abrangente do cenário da arte que estava emergindo. Os convidados incluíam Warhol e Rauschenberg, Jasper Johns, Frank O’Hara, Diane Arbus, Richard Avedon, Frank Stella, Barbara Rose, Roy Lichtenstein, John Ashbery, Merce Cunningham e John Cage.

Sala da mostra "I Heart John Giorno", de Ugo Rondinone, que entrou em cartaz em Paris, em 2015
Sala da mostra "I Heart John Giorno", de Ugo Rondinone, que entrou em cartaz em Paris, em 2015 - André Morin/Divulgação

"Eles não me conheciam de verdade", disse Giorno a Obrist. "A descrição era a de uma festa de aniversário pop para um jovem poeta. Pelo final dos anos 1960, todo mundo havia se tornado muito famoso e ninguém mais ia a festas de aniversário. Aquela era acabou".

Por mais de três décadas, Giorno, budista praticante, também organizava no edifício encontros conhecidos como "pujas de fogo", para centenas de adeptos do budismo tibetano.

Ao longo das décadas, a Giorno Poetry Systems produziu dezenas de álbuns, vídeos e eventos sobre trabalhos de Giorno e outros escritores, músicos e artistas, e, em 1984, a fundação criou o Aids Treatment Project, que desembolsou centenas de milhares de dólares para ajudar vítimas da doença.

Há alguns anos, Giorno estava trabalhando em um livro de memórias intitulado "Great Demon Kings", que seria publicado pela editora Farrar, Straus and Giroux no ano que vem. Ele disse que sua esperança era a de que o livro comunicasse as possibilidades de uma vida radicalmente aberta à arte e aos outros. Em um poema de 2006 intitulado "Obrigado Por Nada", escrito em seu 70º aniversário, Giorno escreveu:
 
"Que todas as drogas que usei / voltem e te deixem alto / que todos os copos de vodca e vinho que bebi / voltem e te façam sentir muito bem, / anestesiando teus terminais nervosos / permitindo que a clareza natural da mente flua livre, / que todos os suicídios sejam canções de aspiração, / obrigado pelas más notícias sempre serem verdadeiras, / que todo chocolate que comi / volte rugindo por tua corrente sanguínea /e te faça sentir felicidade, / obrigado por me permitir ser poeta / um esforço nobre, condenado, mas a única escolha".

Tradução de Paulo Migliacci

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