Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

O espírito de 1966

Noitadas nas mansões de Los Angeles podiam enrubescer um beat ou um hippie

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O último Tarantino, “Era uma Vez em... Hollywood”, repercutiu em mim como uma máquina do tempo e me jogou de volta a um passado um pouco esquecido e do qual suspeito que tenha sido mais importante do que eu costumo admitir —importante, digo, para minha formação e também para a transformação de nossa cultura.

A cidade de Los Angeles do filme é de 1968 e 1969, quando Sharon Tate foi assassinada pelos malucos da seita de Charles Manson.

Eu comecei a viajar a Los Angeles em 1966. Acabava de casar com uma mulher nascida em Thousand Oaks, na rota 101, na altura de Malibu. E ela trabalhava na indústria cinematográfica, como dublê e como atriz (curiosamente, o filme de Tarantino é a história de um dublê).

Ilustração de um homem e uma mulher sentados de costas um para o outro. O homem segura uma taça de vinho em uma mão e um cigarro na outra, ele tem cabelo curto e está de pernas cruzadas. A mulher está sentada usando um vestido leve que deixa suas pernas aparentes, ela tem cabelo longo preso com uma faixa e está segurando uma planta. O fundo é bem colorido composto por faixas alternadas de cores vibrantes
Luciano Salles/Folhapress

Quando cheguei aos EUA, em 1966, o movimento pacifista e hippie, contra a guerra no Vietnã, já estava por toda parte, e sobretudo na Califórnia —1967 seria o “summer of love” (verão do amor) em San Francisco. Mesmo em Nova York, embora com menos tiaras de flores, os simpatizantes do American Communist Party (e, mais tarde, dos Black Panthers) eram atravessados pela onda hippie —a música, um estilo (do cabelo à roupa), uma simpatia por vidas comunitárias e errantes e, aquém dos eventuais textos militantes, uma literatura comum: a da geração beat, da década anterior.

Minha mulher não era hippie, mas, quando a conheci, em Roma, em 1965, estava com “Howl” (Uivo), de Allen Ginsberg, embaixo do braço.

Alguns livros dos beats estão ainda na minha lista dos 200 livros que seria bom ter lido para não morrer idiota —além de Ginsberg, Gregory Corso, Ferlinghetti, Kerouac, Burroughs. Eles me transformaram e transformaram o mundo. Como? 

Por quê? Para entender, talvez seja bom se perguntar por que, desde os anos 1960, os hippies (herdeiros dos beats) eram também desprezados ou pior (como mostra Tarantino).

Alguém dirá que foi pelo uso das drogas, mas, naqueles anos, as drogas (sobretudo anfetaminas e barbitúricos misturados, mas também LSD, mescalina e maconha) já corriam soltas nas casas dos ricos e dos poderosos. 

Outros dirão que foi o sexo, explícito, livre e promíscuo. Luiz Felipe Pondé, nesta mesma página, um mês atrás, comentando o filme de Tarantino, foi nessa direção, imaginando que os hippies escandalizassem a América “adulta” com seus costumes, livres como a proposta de sexo oral por uma desconhecida que pediu carona.

Talvez esses costumes “liberados” parecessem revolucionários nas áreas rurais do centro e do sul dos EUA. Mas, nas grandes cidades de costa a costa, em 1966, não precisava dos hippies para soltar o sexo de ninguém. As noitadas nas mansões angelinas, nos apês de San Francisco ou nos lofts do Village de Nova York podiam facilmente enrubescer um beat ou um hippie.

A liberação sexual dos anos 1960, pensando bem, foi uma bola de neve que vinha rolando desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Talvez por razões darwinistas, depois de cada triunfo da morte, o mundo sempre se torna saudavelmente devasso, ao menos por um tempo.

“História de O” foi publicado na França em 1954. A festa na Factory de Andy Warhol começou em 1962. E, em 1966, existiam, em Los Angeles, saunas gays e hétero para sexo casual e promíscuo, que não tinham nada a ver com o movimento hippie.

Quando, em 1977, abriu Plato’s Retreat em Nova York, o primeiro clube de swing “oficial”,  frequentado pela classe média alta e por celebridades, os clientes não vieram de Woodstock.

Em suma, o que incomodava (e foi marcante) na onda beat e hippie não era a facilidade do sexo nem a das drogas. O que era, então?

Pois é, os militantes políticos europeus ou americanos diziam que os hippies eram cúmplices do “sistema” porque viviam graças às suas falhas. Ou seja, eram como pessoas que quisessem revolucionar a injusta produção e distribuição dos alimentos, mas se satisfizessem dos restos encontrados nas lixeiras dos restaurantes de luxo. De fato, os hippies viviam nas frestas. Por isso mesmo, em tese, não deveriam incomodar ninguém (salvo o Exército, que precisava de soldados para o Vietnã). Qual era, então, o escândalo?

Simples: os beats e os hippies não sonhavam com as coisas com as quais sonhava a imensa maioria da classe média americana e europeia: acumulação de patrimônio, consumo, ostentação…

Não tinham um projeto de sociedade para todos. Apenas tinham vontade de desejar diferente. E o fizeram, ou pelo menos tentaram. Não é pouco.

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