Descrição de chapéu
Televisão

Final de vilãs na trama das 21h ecoa mantras do partido de Bolsonaro

É sintomática a religião e a naturalização da violência no (des)ajustamento do caráter das vilãs de 'A Dona do Pedaço'

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Frederico Pellachin

Detonada pela crítica mas adorada pelo público, que respondeu com audiência expressiva desde sua estreia em maio, recuperando números que não se viam há tempos na faixa das 21h, “A Dona do Pedaço” chegou ao fim na noite de sexta (22) com a exibição de um longuíssimo último capítulo, a ser reprisado neste sábado.

Já era esperado que o encerramento lavrasse o receituário do gênero: a vitória do bem sobre o mal engendrada por uma moral punitiva e catártica. No entanto, o autor da trama, Walcyr Carrasco, resolveu adicionar uma cerejinha amarga no topo desse seu bolo maluco, investindo em um caminho de falsa redenção para as suas vilãs Josiane (Agatha Moreira) e Fabiana (Nathalia Dill).

O expediente de o vilão se dar bem no final não é novidade e já foi explorado em “Vale Tudo” (1988) ou em “Partido Alto” (1984). Na primeira, o empresário corrupto Marco Aurélio (Reginaldo Faria) escapa de ser preso ao fugir triunfalmente do país no seu jatinho particular fazendo o icônico gesto de “banana”. Na segunda, o bicheiro contraventor Célio Cruz (Raul Cortez), também em rota de fuga num jatinho, é surpreendido pela Polícia Federal dentro da aeronave, e sugere malandramente um "diálogo”, buscando corromper os agentes públicos e livrar-se do revés.

Esses exemplos são de uma época em que o Brasil buscava refundar a República, após 20 anos de ditadura. Uma crise ética, econômica e social também sinalizava o pendor para mudanças, o que se confirmou na promulgação da Constituição Cidadã de 1988. 

Passados mais de 30 anos, nossos vilões não são os mesmos, mas as aparências podem enganar. E aí entra o componente religioso no que poderíamos chamar de um novo projeto de fundação da República brasileira.

Em “A Dona do Pedaço”, Fabiana repetia como um bordão a cada desumanidade proferida (sobretudo quando empresária da austeridade) que havia sido criada em um convento. Depois, porém, de experimentar o mundo e falhar no seu projeto imoral de ascensão, resolve retomar os votos, comprometendo-se a não mais sair do lugar onde fora criada.

Mas a oportunidade de se aliar a um matador de aluguel viril e sedutor altera o seu projeto de redenção e os dois terminam juntos e implicados em serviços de extermínio. Em cena emblemática do último capítulo, a ex-freira reza metade do terço por uma alma recém-encomendada. A violência bélica é escoltada por um desejo dissimulado de expiação cristã.

Tomando outro rumo, Josiane é condenada pelos crimes de homicídio que cometeu durante a novela e passa a cumprir pena em um presídio feminino, onde se torna evangélica. Após ser solta  por bom comportamento, reencontra o antigo cúmplice Régis (Reynaldo Gianecchini) —também ele convertido— e decide embarcar com seu novo “irmão de fé” em um projeto missionário no Amazonas. 

No entanto, ao conhecer um homem rico no grupo de pregadores, sua máscara cai e o que parecia então um ensaio de redenção revela-se uma grande falácia, no instante em que a vilã elimina Régis, empurrando-o do alto do Minhocão. Sozinha em sua nova empreitada de ambição, Josiane intimida até mesmo o público, com um olhar sinistro e aterrorizante para a câmera na última tomada da trama.

É curiosa e sintomática a presença da religião e a naturalização da violência no (des)ajustamento do caráter das vilãs pseudorredimidas de “A Dona do Pedaço” no momento mesmo em que o presidente Jair Bolsonaro constitui um novo partido. 

Conservadora, a nova sigla tem em seu manifesto de fundação forte apelo a um moralismo religioso anacrônico e à defesa do porte de armas.

A instituição brasileira da novela, espelho de nossa realidade, parece assimilar o zeitgeist. E a Globo, munida de artimanhas novelescas, parece mandar uma espécie de recado subliminar se blindando dos vilões à solta ao repetir, como um mantra, os primeiros versos do tema musical da abertura dos 161 capítulos da trama: “Quem cultiva a semente do amor/ segue em frente e não se apavora”.

Frederico Pellachin é radialista, pesquisa teledramaturgia brasileira e escreve o blog Na Trilha das Novelas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.