A peça “As Mãos Sujas”, escrita em 1948 por Jean-Paul Sartre, contrapõe dois tipos de figuras que povoaram o imaginário do debate político no século 20. Hoederer, liderança do Partido Operário, é um pragmático, atento à tática de longo prazo, ao jogo do possível na luta política; o jovem Hugo é um idealista disposto a sacrifícios românticos pela plenitude da causa revolucionária.
Mas Sartre apresenta indivíduos voláteis que passam longe de serem só a imagem arquetípica destas posições, ainda que as encarnem.
A profundidade do trabalho de atuação na montagem dirigida por José Fernando Azevedo intensifica esta abordagem dialética e existencialista. Vinicius Meloni, que interpreta Hugo, recusa a caricatura do radicalismo de ocasião. Ele mostra um jovem patético e incapaz de agir, mas, ao mesmo tempo, com comovente coragem e inconformismo.
Cria-se empatia e repulsa por Hugo e isto é ressaltado pela forma como o ator trabalha os volteios da fala, a indecisão corporal, o olhar enviesado e a paixão pela causa.
A encenação de José Fernando Azevedo trabalha mais uma vez com a ideia de dispositivo cênico. Assim como em “Navalha na Carne Negra”, põe um cinegrafista em cena e projeta imagens em tempo presente.
A câmera sublinha as expressões, os detalhes íntimos, o gesto quase imperceptível. Mas não se trata de uma ênfase nos dilemas subjetivos daquelas figuras. Em teatro, a proximidade intensa, mesmo que mediada pelo vídeo, não mostra mais da personagem.
Quando a militante Olga, interpretada por Georgina Casto, olha diretamente para a câmera, não se sabe bem se o que diz ali é o texto da peça ou um manifesto atual. A lágrima que escorre dos seus olhos, e é captada pela câmera, é da atriz e da revolucionária contumaz.
O “dispositivo cênico” sublinha esta dialética da atuação que implica o elenco atual na trama antiga da peça de Sartre. Consegue assim alta expressividade crítica. Também o público sente-se convidado a um exame atual do tema que parecia paralisado no passado.
Em paralelo, as músicas executadas ao vivo e as referências ao filme “Terra em Transe”, de 1967, indicam uma aproximação com o Brasil. Mas aqui a proposta parece mais frágil. O país não aparece de fato, só de forma tangencial e enigmática e é difícil decifrar a correlação que está sendo proposta entre os dois universos.
Esta relação evanescente faz pensar na dificuldade de refletir sobre o país hoje. É verdade que a forma incompleta parece mais honesta para lidar com a falta de respostas fáceis diante do abismo em que nos metemos. Mas não será este tipo de construção enigmática também produto deste abismo?
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