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Pequeno grande romance escrito por Chico Buarque resume o estado do país

Quando o Brasil tiver acabado de vez, só vão precisar de 'Essa Gente' para entender o que aconteceu

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Arthur Nestrovski

Essa Gente

  • Preço R$ 49,90 (200 págs.)
  • Autoria Chico Buarque
  • Editora Companhia das Letras

Numa de tantas cenas em que sonho e realidade se confundem, o narrador, na casa da ex-mulher, tradutora, vê espalhados textos de algumas peças de Shakespeare, entre elas “Sonhos de uma Noite de Verão”. Assim mesmo, no plural, repetido cinco linhas abaixo, para não deixar dúvida.

Como uma história anterior já evidenciara comicamente a mania de Maria Clara em “corrigir” ou “melhorar” os textos que traduz, esse “s” a mais nada tem de casual; serve de emblema do virtuosismo de Chico Buarque em definir personagens e situações num mínimo de espaço, com o máximo de efeito, neste livro que diz muito mais do que parece, ainda mais no que não diz.

Na sequência, Duarte encontra um revólver, que a ex (e mãe de seu filho) agora guarda em casa, e que ele se apressa em remover dali. Caminhando de arma em punho pela madrugada, no Leblon, ouve saudações efusivas —“é isso aí, mestre!”, “contamos contigo, capitão!”— de vizinhos imbuídos do novo espírito dos tempos.

Nada vem do nada e tudo se liga a tudo, num pequeno grande romance que é um incrível quebra-cabeça.

Essas cenas resumem não só a tragicomédia do escritor-narrador, em suas peripécias com ex-mulheres, ex-amigos, editores, cães, socialites, favelados, figuras históricas e um núcleo de fantasmas íntimos, como também o Rio de Janeiro e o país que está aí.

À primeira vista, é um diário de Duarte, autor do outrora famoso best-seller histórico “O Eunuco do Paço Real” e 11 outros livros, há muito incapaz de redigir algo que preste, às voltas com dívidas e promessas. Mas as aparências enganam.

As aparências revelam, também. “Você no livro é preto ou branco?”, indaga o salva-vidas negro Agenor. “Boa pergunta”, responde o mulato Duarte, sem responder. A conversa causa surpresa para quem lê, até ali decerto sem pensar no assunto. Mas este é o assunto; e não vem de hoje o interesse de Chico Buarque, autor de “Leite Derramado”, pelas chagas da questão racial.

Agora consagrado com o prêmio Camões —ungido com a não assinatura do capitão—, não se faz mais necessário separar o escritor do compositor, como era praxe para legitimar a obra literária. Ele mesmo cita suas canções (“Anos Dourados”, “Bia”, “Renata Maria”), com bem humorada leveza.

No contexto mais profundo do livro, pode-se pensar também em outras músicas, como “Sinhá” (que fechava o disco “Chico”, de 2011), um roteiro racial colonial que ao mesmo tempo é de família também, para os Buarque de Hollanda; canção essa que, por sua vez, se liga a “Tua Cantiga” (abrindo o disco seguinte, “Caravanas”, de 2017), com aquele “minha nega” na última estrofe, entregando a história; e ainda “As Caravanas”, que já explicitava a loucura dessa “gente ordeira e virtuosa que apela/ pra polícia despachar de volta/ o populacho pra favela/ ou pra Benguela, ou pra Guiné”.

Nada vem do nada, aqui, e nada é por acaso. Salta aos olhos uma alusão a “Querido Diário”, por exemplo, na cena em que o amigo Fúlvio Castello Branco (imagina-se que da família do presidente da ditadura) maltrata um morador de rua; e saltam aos imaginários ouvidos os versos de “Manhã de Carnaval”, canção de Luiz Bonfá e Antonio Maria, na trilha de “Orfeu Negro”, longa de 1959, na esteira de “Orfeu da Conceição”, antológico musical que inaugurou a bossa nova.

Foi essa última canção, com seus ideais de uma civilidade amorosa e sem preconceitos, que levou a judia holandesa Rebekka, namorada de Agenor, a vir para um sonhado Brasil —repetindo a seu modo a história, já bastante difundida, da mãe branca de Barack Obama, que também adorava o filme.

A distância que nos separa daquele momento —do “país da delicadeza”— parece hoje tão enorme quanto a que contrasta os delicados versos da canção com o “tá na área [...] metralha” de um funk que divide com ela outra página. E, como tudo se liga a tudo, entra em cena o castrato Everaldo Canindé, atualizando, com seu rival Ezequiel, uma longa história de meninos negros castrados para cantar bonito.

As aparências encantam, também, nesse suposto diário, que logo se revela outra coisa, com as cartas de terceiros (para outras pessoas), conversas registradas por extenso em várias vozes e uma cronologia aberratória que nos leva, entre idas e vindas, de novembro de 2018 a setembro de 2019. 

Entender o que pode ser isso pede alguma atenção. O conjunto forma um jogo de espelhos e muito do principal só se deixa entrever por indícios, aqui e ali. Labirintos assim já definiam a forma de um romance como “Budapeste”, de 2003, ou de uma canção como “Rubato”, de 2011, para ficar nesses dois estudos de autorias roubadas. Mas aqui a pressão parece de outra ordem.

Que isso não seja mal entendido: o livro chega a ser muito engraçado, uma alegria de se ler. Talvez seja o melhor romance de Chico. O cuidado que o texto exige de nós não diminui em nada a graça desses sonhos de uma noite de verão —muito mais para pesadelos.

Uma cena, em especial, nos ensina que o que estamos vendo não parece o que parece. É quando o narrador mostra para Rebekka um texto onírico erótico com a própria holandesa de protagonista e que já lemos poucas páginas antes. Quer dizer: uma personagem “real” lendo sobre si mesma, como personagem, no texto do narrador. Que afinal é um personagem também, é ou não é? Mas personagem de quem?

Cabe ter em mente que esse narrador não faz quase outra coisa senão narrar histórias de si mesmo como escritor que não consegue mais escrever. Quer dizer: o narrador Manuel Duarte é, ele mesmo, um personagem-autor do “diário” que agora estamos lendo. A história da impossibilidade de contar a história —escrita, só pode ser, pelo “próprio” Manuel Duarte, autor do livro.

Não dá para revelar o quanto isso se mostra ainda mais engenhoso e importante na trama, com alucinantes requintes edipianos, sem estragar a leitura. Mas ressalte-se que esse escritor —o autor do autor do suposto diário— é, por sua vez, um personagem de Chico Buarque, autor do autor do autor. E quem estará por trás deste autor?

Tantas distâncias, espelhos e sonhos talvez fossem mesmo imprescindíveis para falar do nosso pesadelo real. Personagem, autor e cancionista se misturam em tramas dentro e fora do livro. Sessenta anos depois de “Manhã de Carnaval”, nada poderia estar mais longe daquela visão do país do que “Essa Gente”.

Quando chegarem os escafandristas, quando o Rio for uma cidade submersa e o Brasil tiver acabado de vez, só vão precisar deste livro para entender o que aconteceu.

Arthur Nestrovski é diretor artístico da Osesp, lançou os discos “Chico Violão” e “Jobim Violão” (Biscoito Fino), entre outros

Os livros do artista

O Irmão Alemão (2014)
Partindo da pesquisa sobre um filho que seu pai, Sérgio Buarque de Holanda, teve durante uma estada na Alemanha, Chico se ficcionaliza no adolescente Ciccio, que faz a mesma descoberta na São Paulo dos anos 1960

Leite Derramado (2009)
Um homem idoso de origem aristocrática abarca séculos de história do Brasil ao fazer uma autobiografia alucinada de sua família, contada num leito de hospital

Budapeste (2003)
Um ghost-writer brilhante procura a resposta para seus conflitos existenciais na Hungria, onde se fala “a única língua que o diabo respeita”. Chico ganhou o segundo Jabuti por esta obra que trabalha a confusão do conceito de autoria e a compreensão do ser humano através da linguagem

Benjamim (1995)
Chico trabalha com o duplo ao contar a história de um ex-modelo fotográfico que confunde aquilo que vê fora de si com seu próprio passado. Como de hábito, uma mulher está no centro de sua obsessão

Estorvo (1991)
Considerado o marco inicial de Chico nos romances, após a novela “Fazenda Modelo” (1974) e diversas peças, traz a perambulação quase onírica de um homem esfarrapado e solitário. Venceu o Jabuti de 1992

Trechos do livro

"Foi um tiro na testa que tomou, disparado talvez de alguma janela vizinha por um atirador de elite. Deitado de costas, se contorce inteiro ao levar mais uns tantos tiros à queima-roupa. Depois que se aquieta, os meganhas continuam baleando o cara, na barriga, no peito, no pescoço, na cabeça, eles o matam muitas vezes, como se mata uma barata a chineladas. [...] A polícia não consegue impedir que os presentes chutem seu corpo, e estremeço ao ver meu filho a se aproximar. Consigo desviá-lo do morto, mas ele só quer se juntar aos policiais, que posam para selfies com seus admiradores"

"Quando a Rosane me sorri, suas maçãs do rosto parecem postiças como maçãs de verdade. Ela terá feito preenchimento facial ou posto botox, mas não me importo. Ela pode me receber maquiada demais, com anéis e pulseiras de ouro, pode ter uma estátua dourada na sala, não me importo. [...] Na Rosane que hoje me leva para a cama numa lingerie de seda, ainda vejo a que um dia surgiu do mar, o biquíni branco na pele morena"
 

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