A certa altura de “A Ocupação”, o narrador faz o seguinte comentário a propósito das páginas escritas por um refugiado sírio: “Fazia tempo que a literatura não se mostrava tão urgente e expressiva”.
Ressalta-se então um ideal de literatura, que se reflete na própria feitura do romance, e toma-se claramente o partido de uma escrita literária mais realista e simples. Mas, como todo partido, esse pode e deve ser relativizado, pois em qualquer época a literatura se fez por meio de múltiplos estilos e estratégias.
Importa, de qualquer modo, avaliar a coerência entre a proposição acima e a sua realização. Com efeito, trata-se de relato com linguagem despojada, na maior parte do tempo em primeira pessoa, em que se alternam três planos.
No primeiro, o narrador fala de sua relação com o pai enfermo num hospital. O segundo descreve a situação que dá título à novela: a ocupação do Hotel Cambridge, abandonado no centro de São Paulo, por refugiados e sem-teto. O terceiro é a relação conjugal e a tentativa de ter um filho.
A metáfora básica está alojada no título, referindo-se sobretudo à ocupação do prédio. Fuks participou de uma residência artística no local.
A despeito da solidariedade que representa expor o universo dos despossuídos, não deixa de provocar certo desconforto ético a penetração de um narrador de classe média num universo miserável.
Há descrições verossímeis do estado de ruína em que se encontra o ex-hotel, refletindo a situação arruinada de seus moradores e, indiretamente, o mal que acomete o pai do narrador. Sem dúvida, em qualquer construção humana há uma ruína virtual que a corrói por dentro, levando-a ao desabamento.
O mais instigante de “A Ocupação” está em abordar a fragilidade material de grande parte da população, que sempre existiu, mas que se alastrou nos últimos anos com a vaga migratória dos destruídos pelas guerras e com a precarização geral da força de trabalho em razão da tendência neoliberal da economia.
A narrativa detém um viés de autoficção, na medida em que o próprio autor aparece de modo explícito sob a máscara do protagonista e faz outro projeto que deu origem ao texto ficcional ser exposto internamente por duas cartas: uma de Julián Fuks, dirigida a Mia Couto; outra, a resposta deste.
Os dois trabalharam em parceria num programa patrocinado pela marca suíça Rolex. Não deixa de ser paradoxal que um livro resulte da iniciativa de organizações com naturezas e finalidades opostas —a Rolex e o Cambridge.
No mundo ideal, movimentos de apoio aos desfavorecidos seriam maciçamente auxiliados pelas megaempresas que sustentam o cenário global da desigualdade social. Infelizmente, nenhuma
utopia literária conseguiu até hoje realizar esse milagre.
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