“Retrato de uma Jovem em Chamas” pode ser dividido em duas partes. A primeira nos remete em linha reta ao velho cinema da “qualidade francesa”, aquele que opõe o refinamento europeu à cultura limitada disso que nos acostumamos a chamar de novo mundo (e cinema americano). É algo que parece seduzir os próprios americanos, a julgar pelas indicações a prêmios como Oscar ou Globo de Ouro.
Tudo evoca o bom-tom na história narrada pela pintora Marianne, chamada para fazer o retrato de uma jovem numa solitária ilha da Bretanha. Isso começa já quando a tela que levava no barco cai na água e ela, arrojadamente, se atira no mar para recuperá-la.
Estamos no século 18 e ali ela virá a conhecer as características do caso. Trata-se de uma jovem por nome Heloïse, que vive com a mãe, e a ideia essencial é que o retrato seja belo o bastante para seduzir um pretendente. Não seria tarefa tão difícil, em princípio.
O problema é que Heloïse, embora bela, é um tanto rebelde. Tanto que já despachou um artista que nem sequer chegou a pintá-la. E o pretendente nem era tão ruim assim —para começar, era um milanês, o que deixaria Heloïse sempre muito próxima da música que tanto ama (sem falar na riqueza do pretendente, que parece interessar mais à mãe de Heloïse, interpretada por Valeria Golino).
Marianne e Heloïse se dão bem logo de cara, o que é bom, porque facilita o trabalho, e ruim, porque então entramos no ramo das necessidades artísticas. Em outras palavras, Marianne precisa saber como representar a jovem de modo a apreender não só sua bela figura como seu espírito?
Marianne fracassa, ela própria reconhece. Acho que qualquer espectador concordará, no mais, que seu primeiro esforço é um fracasso completo. Em dado momento, irritada com seu próprio trabalho, ela borra todas as tintas (o resultado é bem interessante, mas estava fora de qualquer padrão estético do século 18).
Marianne, porém, não entrega os pontos e continua a conhecer sempre melhor sua retratada, a romper resistências, a trabalhar no sentido de captar melhor a personagem que tem à sua frente (para um quadro acadêmico, cinema idem).
A partir de então entramos na segunda parte. Céline Sciamma, a diretora do filme, parece abdicar das convenções (do cinema, do século 18, da pintura) e seu filme ganha alguma alma, à medida que as relações entre as duas moças se aprofundam e a diretora parece ter encontrado algo a mostrar que a interessa efetivamente. Com isso, o filme desemboca em um final sincero e comovente.
Temos muitas vezes o hábito injusto de crucificar filmes ótimos por um final menos feliz (em particular os hollyowoodianos, submetidos a pressões de várias ordens). Infelizmente, um final bem-sucedido não resolve os problemas que “Retrato” acumulou ao longo de sua duração, em especial da sua primeira metade.
O êxito final surpreende bem menos que o fato de ter ganho em Cannes o prêmio de melhor roteiro (europeus também gostam da “qualidade francesa”).
Mas é justo dizer que essa segunda parte, mais o final, faz com que “Retrato” se salve do fracasso. Pelo que prometia no início, já é alguma coisa.
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