O que há de mais interessante no Globo de Ouro não é a premiação, mas o espírito de reunião familiar que preserva, com os convidados dispostos em mesas, num salão de hotel, bebericando champanhe e, talvez por isso mesmo, vez por outra um tanto sinceros em seus comentários.
Esse foi o caso de Joaquin Phoenix, por exemplo, escolhido melhor ator por “Coringa”, ao insinuar, durante os agradecimentos, que esse tipo de premiação visa antes de tudo promover a própria indústria, e que a rigor não faz sentido comparar o trabalho de atores.
Foi menos ácido que George C. Scott, que não via nesse tipo de cerimônia mais que um “mercado de carne” e nem se dignou a receber o Oscar em 1971 —os argumentos, no entanto, não são tão diferentes.
Bong Joon-ho, diretor de “Parasita”, premiado como melhor filme estrangeiro, ainda que com palavras suavemente orientais, chamou a atenção para o imenso desinteresse do mercado americano por filmes produzidos em outros países.
Ele mencionou a barreira da língua, mas sabe bem que isso começa por um enorme esforço nacional para impor os próprios produtos (também no exterior, como comprovam as transmissões em inúmeras línguas desse tipo de cerimônia) e ao mesmo tempo restringir o alcance dos festivais internacionais como veículos publicitários.
O esforço para promover o cinema americano passa também pela promoção da língua inglesa, o que garante aos britânicos sempre ao menos um lugar lateral nas premiações do Oscar.
Talvez entre nessa cota a vitória de “Chernobyl” na categoria de melhor minissérie ou filme feito para a TV. Sem desprezo pelo cuidado da produção, ver aquele bando de russos falando inglês tem algo de ridículo, para não dizer logo de falso.
Não se poderia dizer o mesmo do prêmio a Olivia Colman como melhor atriz por sua interpretação da rainha Elizabeth 2ª, na série “The Crown”, que a Netflix prefere exibir sem traduzir o título em outros países —é seu procedimento rotineiro, no mais.
Algumas vozes ora políticas, ora solidárias se fizeram ouvir: contra o belicismo, lamentando a devastação florestal na Austrália, protestando contra a ausência de mulheres entre os indicados a melhor diretor. A ausência do notável “Nós”, de Jordan Peele, um negro, na premiação não foi mencionada, a menos que eu tenha me distraído na hora.
Como algumas surpresas sempre animam a festa, como não saudar a vitória de Brad Pitt como melhor ator coadjuvante em “Era uma Vez em... Hollywood”? Se negros precisam ralar para serem reconhecidos (de Denzel Washington a Spike Lee), um bonitão como Pitt parece ter preferência, mesmo se sua interpretação não passa de “legal”, por assim dizer, e concorre com um bom grupo de monstros sagrados (Al Pacino, Joe Pesci, Tom Hanks, Anthony Hopkins).
Não deixa de ser uma saída que no fim contenta a todo mundo, até pelo absurdo.
É um pouco difícil falar do prêmio de direção dado a Sam Mendes por “1917”, mas a julgar por seu passado, ou ele funciona fazendo filmes de 007 ou se especializa em jogar poeira nos olhos da plateia (quem esquece “Beleza Americana”?). Mas concorrer com gente como Bong Joon-ho ou Martin Scorsese? Ou ocorreu um milagre ou os bravos correspondentes estrangeiros de Hollywood estão de gozação.
Em resumidas contas, o Globo de Ouro oscilou entre o óbvio (“Parasita”, por exemplo) e o quase absurdo (Brad Pitt), entre uma ou outra manifestação política e os habituais agradecimentos, que, como se trata de uma reunião quase familiar, foram não raro um tanto constrangidos.
Exceção lamentável: Tom Hanks, que ao ganhar o prêmio especial Cecil B. DeMille levou ao paroxismo a arte de agradecer a Deus e a todo mundo, com um discurso tão chocho quanto interminável.
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