“Rastilho” é um disco marcado pela urgência. O nome já indica. Rastilho é o pavio que, ao queimar, provoca a explosão. O título vem da faixa final, que, depois do que foi cantado e tocado nas dez anteriores, chega ao último desejo de primeira necessidade.
“Os moribundos dançam/ As moscas já nos cobrem/ Ninguém pode parar/ Nem fé, amor ou sorte/ Vamos explodir”, dizem os versos de encerramento. Kiko Dinucci retrata e enfrenta os horrores do Brasil de hoje neste álbum gravado no final do ano passado e lançado no início de 2020.
Mas seria reduzi-lo à insignificância chamar o trabalho de “político”, assim como é vazio classificar apenas como “experimentais” projetos anteriores, entre eles o primeiro solo, “Cortes Curtos”, de 2017.
Não há cenas de militância explícita. Três das músicas inspiradas em personagens revoltosos nem sequer têm letra. São “faroestes instrumentais”, segundo Dinucci, referindo-se ao ritmo de galope e à sonoridade que tira do seu violão.
“Marquito” evoca Marco Antônio Brás de Carvalho, desenhista mecânico que entrou para a guerrilha durante a ditadura militar e foi morto no centro de São Paulo.
“Gaba”, com Juçara Marçal nos vocais, reverencia a princesa angolana Zacimba Gaba, escravizada no Brasil. E “Dadá” tem no título o apelido de Sérgia Ribeiro da Silva, cangaceira do bando de Lampião. A voz é de Ava Rocha, filha de Glauber. Em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, do cineasta, Dadá é uma das protagonistas.
Talvez não seja por acaso que essa faixa fique entre “Febre do Rato” e “Veneno”, ambas na linha de um Deus e Diabo na terra da garoa.
Na primeira, o homem solapado pela multidão e pela barulheira de São Paulo vai parar no salão de uma igreja neopentecostal. Exu aparece para infernizar o pastor.
“Veneno”, com letra e participação do rapper Ogi, narra o duelo entre um João “tenebroso” e o “cramulhão”, que não cai antes de dar um recado. “Ele falou para o pai de Jesus/ Eu não teria clemência/ Se fosse o meu filho que tivessem posto na cruz.”
Além de ser um disco urgente, “Rastilho” é um exercício. Há anos tendo a guitarra como prioridade, inclusive em “Cortes Curtos”, o artista decidiu tocar só violão dessa vez. O resultado é um desfile de referências que ele não copia —nem conseguiria—, mas recria com assinatura firme.
Dentre outros, é possível identificar alusões aos estilos de Jorge Ben Jor (“Olodé”), Baden Powell (“Vida Mansa”, “Febre do Rato”), Dorival Caymmi (“Foi Batendo o Pé na Terra”) e João Bosco (“Veneno”).
O motocontínuo de “Febre do Rato” remete a “Construção”, de Chico Buarque. As duas canções acompanham um homem perdido na metrópole. Dinucci diz que o seu violão é percussivo e que funde rock e candomblé.
Embora existam momentos mais melódicos, como na introdução da primeira faixa, “Exu Odara” (tema de domínio público), o que prevalece é um toque grave, intenso, expressivo, com uso vigoroso dos bordões (as três cordas de cima).
O som tem o mesmo peso e a mesma urgência das letras.
Subjacente em todas as faixas, a matriz afro-brasileira fica explícita no samba de roda “Foi Batendo o Pé na Terra” e no jongo “Tambú e Candongueiro”. São as mais antigas composições do repertório.
“Vida Mansa” é, na origem, um samba do Rio de Janeiro de 1955, assinado por Norival Reis e José Batista e lançado por Cyro Monteiro. Mas ganhou ares sombrios e baianos.
Faz sentido que essas três canções fortemente afro contem com um coro de pastoras, formado por Dulce Monteiro, Maraísa, Gracinha Menezes e Juçara Marçal.
Parte de uma das turmas mais interessantes da música de São Paulo no século 21, Dinucci, de 42 anos, foi o último a criar projetos solo.
Juçara Marçal, Rodrigo Campos, Romulo Fróes, Thiago França e outros tinham feito antes. Está ainda mais claro que é um artista singular.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.