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'A Peste', de Albert Camus, é metáfora para epidemias e opressões

Romance de 1947, se tornou novamente best-seller na Europa e no Brasil após surto do coronavírus

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“‘A Peste’ chegou a 96 mil exemplares. Fez mais vítimas do que eu podia imaginar.” O comentário irônico de Albert Camus está numa mensagem que ele enviou em setembro de 1947 a seu editor.
Quatro meses depois do lançamento, o romance havia transformado em fenômeno editorial um escritor até então celebrado só nos círculos intelectuais parisienses, como autor de “O Estrangeiro” e de “O Mito de Sísifo”.

Naquele momento, nenhuma epidemia assolava a França. O sucesso do livro se devia a seu caráter simbólico —a cidade argelina de Orã tomada pela peste era uma clara alegoria da Europa sitiada pelos nazistas, um flagelo vivo na memória dos primeiros leitores.

Passadas mais de sete décadas, “A Peste” volta a ter picos de vendas, principalmente em países às voltas com a pandemia provocada pelo novo coronavírus. E mesmo no Brasil, onde a Covid-19 começa a enfileirar vítimas, a editora Record já assinala um aumento de 65% nas vendas do livro.

Prêmio Nobel de literatura em 1957, Camus nunca deixou de ser um best-seller. De 1942 até o final do ano passado, suas obras venderam 24,7 milhões de exemplares pela editora francesa Gallimard, sem contar as traduções.

“A Peste” não é o melhor livro de Camus —“O Estrangeiro” e “A Queda” são suas obras-primas—, mas é o maior livro da história da literatura a ter uma epidemia como tema.

Outras obras fundamentais partiram do assunto. Édipo, na tragédia de Sófocles, cumpre seu oráculo ao libertar Tebas de uma peste. “Decameron”, do renascentista toscano Giovanni Boccaccio, é um conjunto de cem novelas —entre picantes e galantes— narradas por jovens que se refugiam da peste bubônica.

Já “Morte em Veneza”, do alemão Thomas Mann, é uma reflexão crepuscular sobre a ambiguidade moral da arte e do belo, tendo como pano de fundo uma epidemia de cólera.

Mas o único livro a rivalizar com Camus na abordagem frontal da epidemia é “Um Diário do Ano da Peste”, de Daniel Defoe, híbrido de romance e reportagem sobre o flagelo sofrido por Londres em 1665, quando o autor era criança.

Não por acaso, Camus põe como epígrafe de “A Peste” uma frase de “Robinson Crusoe”, do mesmo Defoe —“é tão válido representar um modo de aprisionamento por outro quanto representar qualquer coisa que de fato existe por alguma coisa que não existe”.

O “aprisionamento” de Orã, cidade da Argélia natal de Camus, começa quando a doença que subitamente faz milhares de ratos morrerem contagia também os humanos.

A partir daí, personagens são confrontadas com um dilema ético —sair da cidade para escapar da peste, esperar passivamente seu fim ou se engajar na luta contra a epidemia?

Um narrador aparentemente exterior aos fatos confere monotonia intencional ao afresco coletivo, elegendo algumas personagens como emblemas de seus impasses morais e, assim, conferindo um andamento mitológico a essa crônica sobre um flagelo na banalidade do cotidiano.

A principal delas é Bernard Rieux, médico por meio do qual testemunhamos o avanço da epidemia e que arregimenta as brigadas sanitárias das quais participa Jean Tarrou —a grande personagem do romance, que se tornara um “empestado” antes da peste, após testemunhar um fuzilamento que inocula nele uma aversão à pena capital e às formas de naturalização da morte (tema obsessivo em Camus e que será desenvolvido em “O Homem Revoltado”).

Estão ali, ainda, o jornalista parisiense Rambert, que se vê surpreendido pelo fechamento da cidade e reivindica seu direito de fugir ao estado de exceção, o padre Paneloux, que faz sermões justificando o castigo dos cidadãos pecaminosos e o cínico Cottard, que celebra na epidemia a impunidade de suas contravenções.

Não é difícil identificar uma referência àqueles que lutaram na resistência (como Camus) e àqueles que foram colaboracionistas durante a ocupação nazista. O próprio escritor escreveu que, se o romance “é mais do que uma crônica da resistência, em todo caso não é menos que isso”.

Segundo Camus, a forma alegórica do romance fazia da peste uma metáfora para todas as formas de opressão e de resistência —o nazismo, no pós-Guerra, mas também outros flagelos. Tanto os flagelos totalitários quanto as pandemias reais que, de tempos em tempos, surgem “para desgraça e ensinamento dos homens”.

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