Descrição de chapéu Moda

Grifes em Paris defendem luxo a qualquer custo em tempos de coronavírus

Desfiles esvaziados por surto da doença e consumo em queda fizeram da passarela um manifesto a favor do caro e exclusivo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Paris

Uma das dúvidas recorrentes para quem se interessa minimamente por moda é o motivo de existir tanta roupa. Se o momento pede uma revisão dos hábitos de consumo, as tendências perdem relevância para uma audiência cada vez mais engajada em se vestir de acordo com seu estilo pessoal e o legal agora é reaproveitar o que já existe, porque ainda se insiste em mostrar cortes imutáveis, estampas do passado ou silhuetas revistas há tempos.

Num exercício de "chutômetro" consciente, 70% disso se deve à força da indústria que movimenta trilhões e norteia o que devemos vestir daqui a um ano. Já é fato —ninguém estará imune ao estilo anos 1970 que invadirá as araras populares a partir do que se vê nesta Semana de Moda de Paris, por mais que a estampa paisley, o xadrez, o veludo cotelê e a calça flare apareçam meio diluídos.

Parte desta temporada parisiense de outono-inverno 2021, porém, contemplou na passarela aqueles 30% dispostos a parcelar milhares de reais no cartão para ter, por exemplo, uma camiseta Dior com escritos feministas. Quando o coronavírus provocou a evasão forçada da Ásia e de parte da Europa nos desfiles, as marcas se viram obrigadas a mostrar na prática que luxo não é mais só sobre possuir ou vestir um logo famoso, mas sobre entregar narrativas consistentes que a diferem do varejo.

Talvez uma das melhores representantes dessa ideia seja Nadège Vanhee-Cybulski. Assim como seu nome é desconhecido nas rodas do Instagram e ela não figure, por opção própria, nas páginas de revistas, o guarda-roupa que a estilista concebe para a Hermès transita em segredo pelas ruas.

Inexistem em seu dicionário vestível arroubos imagéticos, brilhos ofuscantes e colagens de décadas passadas. Sua preocupação é diluir a herança da indumentária do hipismo, esporte cujas selas fizeram da marca, ainda no século 19, a preferida dos cavaleiros e, hoje, de ricos que curtem ostentar a seda mais pura, o couro de bezerro sem falhas e o visual minimalista proposto por ela.

Pode parecer simplista, mas o que faz a grife figurar nos três primeiros lugares de vendas do mercado é a capacidade de entregar bolsas históricas —Birkin e Kelly agradam da blogosfera à realeza–, acessórios versáteis e, com Vanhee-Cybulski, roupas complicadas de imagem impossível de copiar.

Sua apropriação das cores primárias de Mondrian podem virar roupa barata, mas não o vestido com plissados nessas cores, que aparecem e somem a depender do ângulo de visão; o casaco preto de cashmere dupla face pode aparecer numa arara mediana, mas não com os detalhes de couro na gola, as fivelas usadas como aviamento e o pedaço da lapela de couro exposto com precisão matemática.

Vanhee-Cybulski explora o detalhe invisível, difícil de olhar na velocidade de uma curtida em rede social. Alguém pode ver o conjunto de alfaiataria e pensar “compro por menos na esquina”, mas não encontrará fácil o corte que acintura e deixa os botões na altura do quadril. Isso é mais modelagem do que roupa utilitária, comercial, como ela fez parecer.

A passarela foi montada com obstáculos comuns em corridas de cavalos, mas justapostos na vertical. As listras das barras provocaram a ilusão óptica pretendida pela designer, que obrigou a plateia a cansar os olhos para ver por dentro das frestas. No fim das contas, o que ela entregou não é moda, mas comportamento. E é sobre comportamento que o luxo versa e, por isso, ganha consumidores.

Também por isso, a Balmain, o extremo oposto da discrição, cai tão bem para o público pagante que gosta de espetáculo, de traços visíveis. Nesta coleção, eles significam bordados de signos astrológicos, do centauro sagitariano ao escorpião venenoso, costurados em saias, túnicas e casacos.

O estilista Olivier Rousteing é tão midiático quanto sua roupa. Um dos preferidos da socialite Kim Kardashian, que passeou por Paris no último fim de semana com um dos looks fetichistas de látex dessa coleção, ele é amado pelas celebridades e jogadores de futebol afeitos aos brilhos.

A seda que reluz no flash foi a base de looks esvoaçantes; os blazers com ombros marcados, marca registrada da grife, receberam detalhes dourados; botões gigantes prenderam as saias; e botas “over the knee”, de cano alto acima do joelho, tipo Xuxa, apareceram feitas de couro envernizado. Não há minimal, apenas máxi, na cartilha de Rousteing adaptada dos códigos de Pierre Balmain.

Não é à toa que, da leva de marcas recentes que abriram loja em São Paulo, dizem que a Balmain é a galinha dos ovos de ouro —e ele não faltará no inverno da marca, vale dizer— do braço de varejo do grupo JHSF, dono do shopping Cidade Jardim. A brasileira, mais barroca do que a francesa, teria mesmo gostado da imagem instagramável e festeira proposta pela marca.

Sobra para as marcas que têm fundadores vivos e história recente a maior dificuldade de se encaixar nessa nova forma de vender roupas caras. Seus estilistas precisam reciclar o que ainda está vivo na memória da audiência, e alguns simplesmente não conseguem.

A Issey Miyake, com seu novo diretor criativo, Satoshi Kondo, tentou emular a utopia de um mundo de mãos dadas contra a intolerância. Foi buscar nos primeiros sentidos da infância as bases de sua coleção. Papel rasgado, cirandas e batuques compuseram trilha e performance, mas para uma marca que tem os plissados, o “pleats please”, como maior vetor criativo, quase tudo se perdeu.

As cores primárias usadas pela Hermès também apareceram no emaranhado de referências ao guarda-roupa clássico, com calças retas, jaquetas com bolsos utilitários e vestidos de tricô, mas a coleção também carrega uma execução primária.

Por mais bonita que tenha parecido a imagem das modelos agarradas umas às outras pela roupa, bem ao estilo ninguém solta a mão de ninguém, Kondo foge do papel de mostrar peças pelas quais vale o investimento.

Melhor fez a grife Vivienne Westwood, ao resgatar seu passado punk, agora mais em voga do que nunca nos xadrezes que passeiam pela temporada. Tecidos reciclados, imagem roqueira e moda desconstruída dialogaram tanto com a ideia de sustentabilidade, adorada pelos mais jovens, quanto com o passado de Westwood na Londres pulsante dos anos 1970.

Naquela época, Mick Jagger, Sid Vicious e toda a geração inconformista que, hoje, no Brasil, seria processada por atentar contra a moralidade, comprava dela, a preços razoáveis, seus looks rasgados com ossos de galinha colados pelo torso.

Ainda que a grife muitas vezes pareça perdida no tempo ao centrar esforços num consumidor que ainda não pode pagar —mas só sonhar— com aquela roupa, ela ensina aos novatos que a medida entre o discurso e a peça costurada é a liga da ciranda na vida real das araras de luxo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.