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Coronavírus adia estreia de única peça escrita por Antunes Filho

Obra inédita do diretor morto no ano passado deve ser montada só após quarentena

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São Paulo

O ator e diretor Luiz Päetow manteve por anos fechada uma caixa de papelão na sua quitinete, no centro de São Paulo. Nela, guardava textos, fotografias e outras lembranças da época em que estudou no Centro de Pesquisa Teatral, o CPT, a escola de artes cênicas que Antunes Filho comandou desde a década de 1980 até sua morte, no ano passado.

Antunes morreu em maio, e dois meses de luto se passaram até Päetow decidir dar uma olhada naquelas lembranças. Foi então que encontrou “$odoma & Gomorra”, talvez a única peça original na longa carreira do diretor.

Com o texto em mãos, Päetow pretende fazer uma série de apresentações “pocket”, mostrando adaptações e trechos da peça, quando a quarentena imposta pela pandemia de coronavírus passar. Uma dessas encenações seria no Festival de Teatro de Curitiba, adiado de março para setembro por causa da crise de saúde pública em todo o mundo.

Mas, com ou sem encenação prevista, o que torna essa descoberta ainda mais inédita é que Antunes não é autor de textos teatrais. Como diretor, encenou textos de autores estrangeiros e nacionais e deu um salto em sua carreira quando adaptou para o palco “Macunaíma”, clássico de Mário de Andrade, em 1978. Até hoje o espetáculo é considerado por historiadores a entrada do teatro brasileiro na contemporaneidade. Embora inspirado num episódio bíblico, “$odoma & Gomorra” pode, este sim, ser considerado um texto próprio do encenador.

Päetow faz segredo sobre o conteúdo da peça, mas permitiu ao repórter ter acesso a trechos e falou um pouco sobre o que está ali contido. Sodoma e Gomorra foram duas cidades castigadas pela ira de Deus, e há interpretações diferentes sobre a razão desse castigo. No Velho Testamento, os habitantes de Sodoma e Gomorra são descritos como arrogantes e negligentes com os homens e mulheres de fora da comunidade. Ficou mais famoso, porém, o perfil sexual dos sodomitas, associados pejorativamente até hoje à homossexualidade.

Na Bíblia é dito que Deus se voltou contra os habitantes da cidade e decidiu exterminar todos eles, com fogo e enxofre. Essa é a inspiração para a peça de Antunes. Päetow diz que a leitura se afasta de duas possibilidades —a peça não tem o tom irônico que poderia marcar, por exemplo, um episódio bíblico do humorístico Porta dos Fundos e não se dedica a conduzir um auto, ou uma história que valide a versão contada nas igrejas.

A maior simbologia da peça, diz Päetow, é a metáfora de que os habitantes de ambas as cidades vivem numa espécie de cativeiro. Ali, haverá conflitos de naturezas diversas, vividas entre familiares, por exemplo. Há uma cena que foi escrita por Päetow dentro da peça, que teria sido o ponto de partida da obra que Antunes escreveu. Essa cena mostra um parricídio.

Päetow conta que escreveu esse trecho para as sessões do famoso “Prêt-à-Porter”, que eram exercícios de linguagem praticados pelos alunos do CPT, mais tarde transformados em espetáculos curtos com pouquíssimos recursos cênicos. O ciclo, por essas características, costumava ser associado ao naturalismo, trazendo para a cena situações mais prosaicas ou, como diz Päetow, “cenas de café da manhã com alguém passando manteiga no pão”.

A cena que Päetow apresentou a Antunes não entrou para o repertório do “Prêt-à-Porter”. Ele próprio diz que tinha vontade de subverter aquelas linhas gerais do programa de Antunes estabelecidas em sala de aula e trazer situações mais trágicas ou mais fortes para a cena. Segundo Päetow, um dia Antunes disse a ele que aquela cena, embora recusada para o propósito inicial, havia lhe inspirado a escrever algo.

Dias depois, o diretor chegou com “$odoma & Gomorra”.

Para o programa de “tubos de ensaio”, como o diretor está chamando suas versões “pocket”, o título da peça virou “SodomaGomorra: AntunesFilho”, e o texto também passou por transformações.

"Nunca que eu ia ser canalha de pegar um texto inacabado dele e falar ‘olha, vou encenar essa peça inacabada’”, diz Päetow. Ele tem uma boa explicação para isso —a forma de textualizar de Antunes se dava por meio de uma intimidade com o palco. Os textos, mesmo aqueles mantidos no original, passavam por longas sessões de preparação junto aos atores.

Seus tais tubos de ensaio estão previstos para depois que passar a pandemia de coronavírus. Deve haver encenações no Festival Internacional de Rio Preto, com Matheus Nachtergaele, Grace Passô, Jé Oliveira e Fabiana Gugli, em julho, no Cena Contemporânea, de Brasília, com Cacá Carvalho, Elisa Ohtake e Rodrigo Bolzan, em agosto, e no Festival de Curitiba, com Cacá Carvalho, Nena Inoue e Christian Malheiros, agora em setembro.

O espetáculo deve cumprir ainda uma temporada, a ser confirmada, no Theatro São Pedro, em São Paulo.

Na visão de Päetow, Antunes “não é dramaturgo, não tem formação dramatúrgica”, e os “diálogos [da peça] não têm embocadura”.

“O ouvido dele é bom em cena. Mas, sozinho, ele não tem embocadura. Por isso reescrevi diálogos”, diz. “A essência do que é esse trabalho aqui não é só encenar uma peça inédita e póstuma, mas sim aproveitar uma coisa que ainda não foi plantada e que tem uma potência enorme nesse momento que a gente está vivendo”, diz o diretor, comparando a sensação de fim de mundo com um mundo que, de fato, se esvai.​

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