Moraes Moreira inovou os trios elétricos e criticou elitismo das cordas na folia

Com a ascensão da axé music e dos grandes blocos, cantor se afastou do Carnaval baiano

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Salvador

O cantor, compositor e violonista Moraes Moreira, morto depois de um infarto nesta segunda-feira (13), no Rio de Janeiro, despontou no grupo Novos Baianos, mas, numa carreira de 50 anos, desfrutou de tempo e talento para introduzir inovações na história do carnaval brasileiro.

O baiano nascido em Ituaçu, em 1947, sabia sintetizar e aproximar samba, choro, rock, ijexá, frevo, baião e bossa nova. Homem do interior, começou a tocar sanfona antes do violão, absorvendo como letrista a poética da literatura de cordel e usando a sua estrutura para narrar a própria vida.

De 1969 a 1975, Moraes se reuniu a Baby do Brasil (à época, Consuelo), Pepeu Gomes, Paulinho Boca de Cantor e Luiz Galvão no grupo Novos Baianos, criado em Salvador antes de migrarem para o Rio. Num marco geracional, não só estritamente musical, eles experimentaram a vida comunitária num apartamento em Botafogo e no sítio Cantinho do Vovô, em Jacarepaguá, repercutindo na mitologia da contracultura, na ditadura militar.

Responsável pelos arranjos com Pepeu, Moraes compôs ao lado de Galvão, letrista da trupe, alguns dos maiores clássicos do conjunto, como “Preta Pretinha”, “Mistério do Planeta”, “A Menina Dança”, “Dê um Rolê” e “Acabou Chorare”.

Depois do primeiro álbum, "Ferro na Boneca", de 1970, o disco “Acabou Chorare”, de 1972, absorveu a influência do violão e do próprio gosto apurado de João Gilberto, conterrâneo de Galvão, outro nascido em Juazeiro, na Bahia. A longa visita do mestre da bossa nova influenciou a batida do Moraes violonista e resultou no resgate de um samba de Assis Valente, “Brasil Pandeiro”. “Acabou Chorare” passaria a frequentar as listas dos melhores álbuns da música popular brasileira.

Moraes era meu amigo de todos os dias. Começou há 50 anos, quando encontrei ele e Galvão pela primeira vez. Fomos fazendo aquela outra família, uma família que não existia ainda, que não tinha laços sanguíneos, mas tinha uma afinidade tremenda. A afinidade veio dessa alegria. Pode acontecer o que acontecer, mas, quando a gente se encontra, é uma festa. A música flui tranquilamente. Moraes Moreira foi o grande timoneiro”, afirma Paulinho Boca de Cantor.

A aventura solo iniciada com o álbum “Moraes Moreira”, em 1975, teria grande significado para a história do Carnaval, ao revelar as potencialidades técnicas e estéticas do trio elétrico.

O guitarrista Armandinho, da família musical do trio Dodô & Osmar, e os letristas Antonio Risério e Fausto Nilo são peças relevantes nessas inovações formais e poéticas introduzidas na folia baiana. Em seu violão, Moraes traduziu o ritmo ijexá para o carnaval eletrificado.

Num salto para a popularização da festa, ele introduziu a voz de cantor no trio, onde prevalecia o frevo instrumental executado pela guitarra baiana da família Macedo. Nesse período, Moraes, bem como Pepeu e Baby, ia mais longe do que os tropicalistas na imersão carnavalesca.

“Ele escreveu toda a história do trio nas músicas. Fez uma parceria com meu pai, Osmar, ‘Pombo Correio’. No carnaval de 1975 ele vai pro trio com a gente, com aquele som ainda precário. De vez em quando ele cantava. Os outros passaram a seguir isso”, diz o guitarrista Armandinho, seu parceiro em “Chame Gente”.

Nos anos 1970, influenciado pela ascensão dos blocos negros de Salvador, como Ilê Aiyê e Badauê, Moraes se incorporou à africanização do carnaval. Em 1979 veio “Assim Pintou Moçambique”, com letra de Risério, do álbum “Lá Vem o Brasil Descendo a Ladeira” –“assim pintou Moçambique/ nesse tique nesse taque/ nesse toque nesse pique”. Nasceu nesse mesmo ano “Chão da Praça”, parceria com Fausto Nilo, onipresente em seu repertório –“tem que dançar a dança/ que a nossa dor/ balança o chão da praça”.

Era capaz de absorver os rios musicais de Pernambuco, Bahia e África. Com a ascensão da axé music e dos grandes blocos, Moraes se afastou do Carnaval baiano e virou um crítico permanente do uso de cordas na folia, por enxergar elitismo e atitude antipopular.

Nos anos 2000, acompanhado pelo filho, Davi Moraes, ele retornou ao circuito num trio independente, mas não cessou o bombardeio à elitização da festa, rejeitando qualquer influência sua sobre o axé. “Quero fazer uma declaração aqui. Não sou o pai da axé music”, declarou num desfile recente.

Sem dúvida, suas contribuições musicais tiveram peso na origem do gênero que invadiu o mercado fonográfico no final dos anos 1980 e se expandiu nos anos 1990. Nos últimos anos, Moraes presenciou uma vitória –os trios sem cordas voltaram com força e até um bloco em sua homenagem passou a desfilar em Salvador, a partir de 2014, o Moraes e Moreira.

Outro reencontro, dessa vez geracional, aconteceu em 2016. Superando desavenças com os amigos, ele aceitou fazer a turnê “Acabou Chorare – Os Novos Baianos se Encontram”. Perto do fim, Moraes regressava à família.

O violão de Moraes marcou várias gerações de músicos desde os Novos Baianos. “Para todo mundo que acompanha a tradição do violão brasileiro —João Gilberto, Gilberto Gil, João Bosco, esses grandes violonistas— Moraes era uma dessas vertentes de importância extrema”, diz o músico Moreno Veloso. “Não sei nem explicar exatamente quanto, mas só olhando para o instrumento, principalmente para o violão, e ele vai dizer. Além de o Davi ser um dos expoentes do instrumento brasileiro também. Tudo isso é muita coisa.”

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