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Sérgio Sant'anna, morto aos 78, fez tudo o que era possível com palavras

'Não gosto de me repetir' era um dos mantras favoritos do escritor carioca

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Gustavo Pacheco

"Não quero assustar ninguém, mas acho a peste que nos assola simplesmente aterrorizante. Não encontro outro modo de reagir senão escrevendo", dizia Sérgio Sant'Anna, semanas atrás, em seu perfil no Facebook.

Figura central e incontornável da literatura brasileira, Sant'Anna morreu na madrugada deste domingo (10), no Rio de Janeiro, aos 78 anos, em decorrência do coronavírus. A peste que nos assola interrompeu assim a vida e a obra de um escritor obcecado pelo seu ofício e que, depois de meio século de carreira, continuava em pleno domínio de seus poderes criadores.

O autor estreou em 1969 com o livro de contos "O Sobrevivente", que o levou a ganhar uma bolsa para o International Writing Program da Universidade de Iowa, no ano seguinte. Com seu segundo livro, "Notas de Manfredo Rangel, Repórter", de 1973, ele se firmou como um dos melhores e mais originais escritores brasileiros, tendo como uma de suas principais características a variedade –de forma, de tema, de extensão, de feitio. “Não gosto de me repetir” era um de seus mantras favoritos.

É assim que encontramos em sua obra quase tudo o que é possível fazer com palavras, desde a poesia até o romance policial, passando pelo teatro, pelo ensaio e pelas memórias, sem esquecer as várias combinações possíveis entre esses gêneros (como "A Tragédia Brasileira", de 1984, classificada pelo autor como “romance-teatro”).

Dentro dessa variedade, não é difícil perceber que o centro de gravidade de Sant’Anna sempre foi a narrativa curta, entre o conto e a novela. É aqui que ele deu sua contribuição decisiva à ficção, explorando e ampliando as possibilidades das formas breves em obras fundamentais como "O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro", de 1982. Nesse, como em vários outros livros de Sant'Anna, a convicção de que cada conto pede uma configuração nova e particular resulta em textos de alta qualidade e, ao mesmo tempo, completamente distintos entre si.

Por exemplo, o formato clássico, enganosamente realista, de "Na Boca do Túnel" –talvez o melhor conto sobre futebol já escrito no Brasil– se presta admiravelmente a transmitir o conhecimento acumulado em uma vida inteira jogando, assistindo e amando futebol (e, mais especificamente, o Fluminense F. C.). Nada a ver com a radicalidade de "Conto (Não Conto)", o mais conhecido texto metaficcional de Sant’Anna.

"O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro", por sua vez, talvez seja o melhor exemplo de um traço muito característico do autor –o diálogo com outras expressões artísticas, como a música, o cinema, as artes plásticas e o teatro. Aqui, a forma experimental do conto reflete e responde à liberdade criadora de artistas tão diferentemente inovadores quanto John Cage, Antunes Filho e João Gilberto.

Em todos esses exemplos, aparece também outro elemento recorrente na obra de Sant’Anna –a predileção por (ou necessidade de) deixar à mostra os andaimes da criação, como se ele estivesse permanentemente convidando o leitor a não se esquecer de que tudo aquilo é ficção. Talvez venha daí outra característica frequente em sua narrativa –o senso de humor, que, ao sublinhar a artificialidade do mundo e da própria arte, nos lembra a todo tempo que "todo ser humano é sempre risível".

É tentador dizer que o principal legado de Sérgio Sant'Anna para a literatura brasileira é a liberdade e a inventividade formal, mas a verdade é que sua contribuição é bem maior do que isso. Ele é também um mestre da prosa límpida e direta, especialmente quando nos mostra como é possível ser lírico sem abusar dos adjetivos e outros penduricalhos (como em vários contos de "O Voo da Madrugada", de 2003).

Além disso, e ao contrário de Rubem Fonseca e Dalton Trevisan —dois autores que ele admirava muitíssimo e em cuja companhia é frequentemente posto, numa espécie de santíssima trindade do conto brasileiro contemporâneo—, Sant'Anna teve intensa atuação pública como intelectual, jornalista e professor universitário, fez a cabeça de muita gente e foi para muitos— inclusive para o autor deste texto— um exemplo de generosidade e integridade artística.

Sempre dizia que “gostava de gostar” da literatura brasileira contemporânea, que acompanhava com atenção, e fazia o possível para ler e ajudar os inúmeros escritores iniciantes que o procuravam.

Nos últimos tempos, sentindo a idade chegar e obcecado com a morte, Sant'Anna escrevia e publicava como nunca, sem perder o vigor e a novidade —foram cinco títulos em menos de dez anos. Em seus últimos livros, abriu um fecundo veio memorialístico, revisitando episódios de sua vida em um "acerto de contas" consigo mesmo, como em "O Conto Zero e Outras Histórias", de 2016. Seu último livro, "Anjo Noturno", foi publicado em 2017.

"Esse medo do futuro está me deixando a mil”, ele dizia no último email que recebi dele, semanas atrás. Entusiasmado, contava que tinha terminado uma novela e dois contos novos, um deles publicado neste jornal. Sua disposição parecia a de um jovem estreante, e não a de alguém com 20 livros publicados. Numa fase da vida em que muitos artistas se aposentam ou se tornam pastiches de si mesmos, Sérgio Sant'Anna continuava produzindo com regularidade e qualidade assombrosas.

Em uma de suas últimas postagens no Facebook, ele sentenciava: "O Brasil é um filme de terror". Nesse filme, nenhuma autoridade governamental vai se manifestar sobre a morte de um dos maiores artistas deste país, como não se manifestou sobre a morte de Rubem Fonseca, de Moraes Moreira ou de Aldir Blanc. Mas não creio que Sérgio Sant'Anna se incomodasse muito com isso; na verdade, talvez até se divertisse, recitando "Imortalidade (Epitáfio)", de seu livro de poemas "Junk-box", de 1984.

"Minha carne
aos vermes servem
porém estátua
em praça cívica
a glória minha
é um holograma
em cujos louros
cagam os pombos"

Gustavo Pacheco

Antropólogo, diplomata e autor de "Alguns Humanos" (Tinta da China)

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