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Ataques a monumentos enunciam desavenças pelo direito à memória

Ações de derrubada de patrimônio vêm ocorrendo desde a semana passada na Europa e nos EUA

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Giselle Beiguelman

Artista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, é autora de "Memória da Amnésia" (Edições Sesc), entre outros livros

"Urban fallism", ou derrubacionismo urbano, em tradução literal, "nãonumentos", ou "nonuments", originalmente, e contra-monumentos são alguns dos termos que o ativismo e a arte contemporânea vêm somando aos conceitos da crítica especializada nas áreas de estudo do patrimônio cultural e da memória.

O primeiro termo, "fallism", é decorrente dos protestos contra o monumento a Cecil John Rhodes na Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul, que culminaram na sua remoção há cinco anos. Rhodes Must Fall, ou Rhodes tem de cair, era a chamada dos estudantes contra a presença no campus da estátua em homenagem a esse magnata diretamente ligado ao colonialismo e ao racismo.

O movimento "fallista" se expandiu para uma série de outras reivindicações na África do Sul e é sua estratégia de contestação a que mobiliza as ações de derrubada de monumentos que ocorrem desde a semana passada sistematicamente, na Europa e também nos Estados Unidos.

Importante demarcar que não se trata de atos de vandalismo, mas de táticas ativistas que não são as únicas, nem de um movimento isolado. "Nonuments", por exemplo, é um neologismo cunhado por um coletivo homônimo, fundado no Museu de Arte Transitória de Liubliana, na Eslovênia, que desde 2011 mapeia e estuda monumentos, arquiteturas e espaços públicos abandonados, indesejados ou esquecidos.

Não menos relevante é a noção de contra-monumento, conceito fartamente usado desde os anos 1990, e que tem suas origens nas estéticas da memória relacionada ao Holocausto. Cobrindo hoje um arco diversificado de temas, diz respeito tanto a estratégias contrárias aos princípios tradicionais de monumento, quanto a projetos criados para combater um monumento existente e o que ele representa.

A multiplicação de conceitos e práticas acompanha a proliferação de confrontos com a história oficial encarnada em monumentos que enunciam, entre dedos em riste, espadas, cavalos e homens brancos fardados, a presença das forças sociais que os ergueram. Essas ações ativistas não incidem só contra os monumentos, mas também contra edifícios, nomes de ruas e datas históricas.

Nesse sentido, evidenciam a conexão entre a pluralidade de formas de contestação da memória e as reivindicações dos grupos, cujas histórias foram (e são) invisibilizadas, e a continuidade desses procedimentos no espectro político atual.

É no contexto, portanto, das lutas contra as desigualdades que atualizam o colonialismo e contra o apagamento das vítimas dos autoritarismos que essas modalidades de ativismo voltadas ao patrimônio se constituem e se organizam.

Alvo privilegiado dos confrontos, no estado e na cidade de São Paulo, são os monumentos dedicados aos bandeirantes. Apesar de a historiografia contemporânea ser rica em estudos críticos que esmiúçam sua associação com a escravização e genocídio dos indígenas, isso está presentes não só em monumentos, mas em um complexo de ruas e estradas que compõem uma espécie de rede imaginária de sua presença no tecido urbano paulistano e paulista.

É essa rede imaginária que faz dos monumentos uma espécie de arquivo distribuído da narrativa histórica do establishment, consagrando no espaço urbano aquilo que foi considerado memorável e promovendo uma determinada imagem pública da cidade.

Discutir os seus significados, contestar e expandir suas ideias é, portanto, reivindicar o direito à memória no espaço público e disputar o direito de ocupar o território.

O filósofo camaronês Achille Mbembe, entre outros especialistas, propõe que os monumentos sejam recolhidos a museus onde possam ser submetidos à reflexão crítica e histórica. Uma curadoria desse tipo foi feita no Museu da Cidade de Spandau, em Berlim, reunindo monumentos prussianos, nazistas e um expressivo conjunto de obras problemáticas.

Outras direções desse tipo de abordagem se voltam a procedimentos laboratoriais de engajamento do público em formas de ressignificação do patrimônio, como ocorre na Filadélfia.

Isso sem falar nos projetos artísticos que, alinhados com a noção de "preservação experimental", teorizada por Jorge Otero-Pailos, professor da Universidade Columbia, propõem apropriações e reconfigurações dos monumentos, como as que fizemos aqui em São Paulo e em Salvador em projetos como "Monumento Nenhum", "Chacina da Luz" e "Beleza Convulsiva Tropical".

Essas novas dinâmicas implicam um exercício coletivo de reprogramação simbólica das imagens que os monumentos projetam, reconhecendo a necessidade da remoção de várias obras do espaço público, mas não sua destruição. Isso porque buscam refletir sobre a história que a cidade e o país formularam a respeito de si, sem redundar em novos apagamentos.

Afinal, reconhecer e interrogar a memória da barbárie é crucial para confrontar a continuidade das suas práticas e das políticas de esquecimento. Especialmente num país como o Brasil, onde o abandono dos monumentos pelo Estado e pelas instituições é tamanho que se pode encontrar obras no lixo, como ocorreu recentemente em Fortaleza.

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